“A glória será, em grande parte, uma recordação agradecida” (Pedro Casaldáliga)
Toda a Bíblia é a ata de uma memória e a vida cristã se fundamenta numa grande memória. Um dos momentos capitais da vida da comunidade cristã é a “anámnesis”, o “memorial” da morte e ressurreição de Jesus, o Senhor, memória que convoca toda a comunidade dos que creem em torno da mesa.
E esta é uma memória saudável, curativa, edificante e subversiva, porque não é fuga, mas descida às raízes e aos fundamentos individuais e comunitários; não é uma memória morbosa (doentia), mas inserção, renovação e circulação da seiva própria, da qual vive a comunidade, não é estática e auto complacente, mas é encontro com as correntes profundas do ser e da vida. Uma pessoa doente em sua memória, ressentida em sua história pessoal, também será doente na mente e no coração. A consciência se embota quando a memória se constitui em depósito de rancores, ressentimentos, amarguras, essas recordações, pela hostilidade que carregam, fecham a pessoa. Não há melhorias, mudanças, ou conversão, que não seja melhoria, mudança ou conversão da memória.
As lembranças nutrem nosso presente
Neste ponto, a mensagem bíblica vem ao encontro da experiência autenticamente humana, já que a memória tem nela um papel muito importante: reviver o passado para assumi-lo como parte permanente e insubstituível da própria história. Além disso, acolher e aproveitar da experiência dos outros, transmitida mediante sua memória. Disso decorre que um povo sem memória não faz história.
Só a memória está em posição de nos ajudar a entender o sentido e a profundidade de um acontecimento, ela revela a verdade de um acontecimento. Lembrar-se é trazer aos nossos corações um evento passado, para dar-lhe nova vida. Na verdade, só através das profundezas de nosso coração, lembramos do que passou. “O que a memória amou fica eterno” (Adélia Prado).
As lembranças nutrem e seu fogo e nos dão um valor inestimável. Nas lembranças existe sabedoria, intensidade de vida. A memória nunca é experiência vazia, mas algo pleno, carregada de presenças, pois ela afunda suas raízes no coração da existência.
Nos Exercícios Espirituais, a memória cumpre uma vital função de desbloqueio e de tomada de consciência. A memória nos ajuda a evocar pensamentos, desejos e sentimentos. A espiritualidade inaciana nos revela uma diferença substancial que se dá entre “memória-recordação” e “memória-experiência” (memória afetiva). A primeira guar-da ou arquiva dados (acontecimentos, datas, lugares, circunstâncias, etc) sem que a pessoa se sinta implicada naquilo que recorda.
A segunda, ao contrário, atualiza algo no qual o sujeito da memória se encontra envolvido e, portanto, revive aquilo que se atualiza. A recordação é frágil (se debilita com o passar dos anos) e a memória espiritual é poderosa, pois continua tendo um peso para a vida. A memória inaciana consiste na permanente presença no espírito de uma experiência passada. Podemos falar, neste caso, de memória fundante, já que voltamos a ela não como a uma referência passada, mas como ao fundamento sobre o qual se vai elevando o edifício espiritual da vida. Esta memória é algo vital que fica gravado de modo indelével no interior da pessoa.
A memória é fonte da vida espiritual
Encontramo-nos, aqui, com a experiência espiritual de uma “memória-vida”. Parece, pois, que o acontecimento como tal tem uma permanente força ou influência no interior de cada um. Não é simplesmente uma memória de referência para o curso dos acontecimentos que constituem a trama de sua história espiritual, mas algo que permanentemente está vivo e influi eficazmente na sua vida espiritual.
Nesse sentido, a memória é fonte da vida espiritual. A memória inaciana não é tanto a “memória recapituladora”, mas uma memória discernente e ativa para interpretar a ação e a direção de Deus em nossa vida. A memória, exercida nos EE é uma leitura de fé ou discernimento da própria história, não só um relato edificante. Aqui não se trata simplesmente da memória agradecida do passado, mas a “memória fundacional”, ou seja, o reencontro com a experiência fonte da própria vida. Memória enquanto “arte teologal de reconhecer o projeto de Deus sobre o mundo, sobre o ser humano, sobre si mesmo no presente” (D. Bertrand).
Texto Bíblico Lc 1,46-56 / 1Cr 16,7-36
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