Aquele que prevê o futuro erra mesmo quando acerta  (provérbio árabe)

Carl Smitt, filósofo político, dizia que havia dois tipos de processos sociais. Por uma parte, os processos que se dão no âmbito da terra: o direito, o normativo, o que podemos prever. Por outra, o âmbito marítimo: o do imprevisível, o líquido e difícil de domesticar, não existem rotas. Embora todo pensamento, espiritualidade, religiosidade, no qual nos movemos, está constituído para nos facilitar a viver na terra, o contexto pós-moderno onde estamos quase que nos obriga a viver no mar. Não temos certezas na ordem sociológica, política, econômica, religiosa. Vivemos a modernidade líquida. A realidade hoje não é sólida para poder agarrá-la. É aí onde, como pessoas inacianas, devemos nos situar: O que significa isso para nós, marcados pela experiência dos Exercícios Espirituais?

Podemos expressar essa situação com uma frase bíblica: “E Deus estava fora da cidade” (EE 33,7). Biblicamente falando, fora da cidade é um lugar de incerteza e de ambiguidade. Fora da cidade era onde estavam os excluídos da época, os endemoninhados, os leprosos, o mundo da exclusão. Jesus caminha toda sua vida fora da cidade, nasce e morre fora da cidade. Jesus vive sua vida fora da cidade, fora do acampamento, fora das certezas sociais e religiosas, porque vive entregue ao Pai. Jesus não vive no sólido. Jesus vive no terreno do mar.

É preciso sair dos limites conhecidos

Uma primeira consequência para a espiritualidade inaciana neste mundo em emergência é a que está expressa na carta aos Hebreus: “Saiamos, portanto, ao seu encontro fora do acampamento, carregando a sua humilhação” (Hb 13,13). O primeiro aspecto desta espiritualidade nos chama ao exílio. E isto supõe para nós transitar fronteiras. Com a carta do Papa Emérito Bento XVI sobre o lugar que a Companhia de Jesus deveria ocupar na Igreja e no mundo voltamos a retomar a dinâmica do transitar as fronteiras.

O primeiro chamado é para irmos a outros espaços e irmos de outras maneiras, ou seja, empreender um exílio material, físico, mas também mental e espiritual. Para ir onde não sabemos, devemos ir por onde não sabemos. Habitualmente sempre fazemos nossos exílios com uma infinidade de seguranças. Vamos onde nós queremos, onde nós sabemos, onde nós somos alguém e onde vamos fazer algo. E o exílio do cristão é ir aonde não sabemos, para estar com Aquele que tudo sabe. Vivemos em mundos-bolha. É difícil sair do terreno conhecido. Tudo parece conspirar para que as pessoas se mantenham dentro dos limites politicamente corretos. Debaixo das expressões transgressor, alternativo, diferente se esconde um forte e constrangedor convencionalismo.

Hoje, o que é ser verdadeiramente transgressor?

A cultura do bem-estar nos envolve em dinâmicas que nos distraem, mas também empobrecem o horizonte. Certamente não são as condutas de risco ou as vestimentas pitorescas, nem determinadas opções estéticas. O que significa hoje pensar por si mesmo? O que é sair dos cânones? O que é remar contra a corrente? Está difícil encontrar algo que soa verdadeiramente diferente. Sair de nossas seguranças para adentrar-nos no terreno do incerto, sair dos espaços onde nos sentimos fortes para arriscarmos a transitar por lugares onde somos frágeis, sair do inquestionável para enfrentarmos o novo.

É decisivo estar dispostos a abrir espaços em nossa história à novas pessoas e situações, novas vivências, novas experiências. Porque sempre há algo diferente e inesperado que pode enriquecer-nos. A vida está cheia de possibilidades, inumeráveis caminhos que podemos percorrer. Pessoas instigantes que aparecem em nossas vidas, desafios, provocações, aprendizagens, motivos para celebrar lições que aprenderemos e nos farão um pouco mais lúcidos, mais humanos e mais simples.

A força do inesperado é a chave para se compreender o mundo, muito mais do que as mudanças lentas e cumulativas. O conselheiro Aires, personagem de Machado de Assis, já dizia que o “inesperado tinha voto decisivo na assembleia dos acontecimentos”.  O futuro é imprevisível e os acontecimentos que vão transformar a vida das pessoas são inesperados. A espiritualidade inaciana é uma espiritualidade que desperta nosso instinto curioso e reacende em nosso interior a chama da busca. Ela nos move a buscar e encontrar Deus em todas as coisas. E Deus é surpreendente, inesperado, desconcertante.

Texto Bíblico  Mt 15, 21-28  / Lc 8, 22-39

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