“O animal satisfeito dorme” (Guimarães Rosa)

De fato, por detrás desta afirmação está um dos mais profundos alertas contra o risco de cairmos na monotonia existencial, na repetição mecânica das atividades, na indigência espiritual. O ser humano perde consistência e energia vital toda vez que se sente plenamente satisfeito com a maneira como as coisas estão, com o modo rotineiro de proceder, imobilizando-se na acomodação e paralisando-se diante da presença do novo.

Estar satisfeito consigo mesmo é considerar-se terminado e encerrado na estreiteza do momento, por isso mesmo, incapaz de mudança. Segundo o teólogo Karl Rahner, “nós não podemos mudar o mundo, mas tudo o que fazemos e dizemos deve estar na direção da mudança”. E viver o espírito de mudança é próprio de quem se sente insatisfeito. Sabemos que a satisfação conclui, encerra, termina. A satisfação não deixa margem para a continuidade, para o prosseguimento, para o desdobramento. A satisfação limita, amortece, impede a criatividade e a busca do novo

Estar satisfeito é estar fechado à surpresa

A palavra “insatisfação” lembra o dinamismo da vida, silencioso, mas constante. Ela se alimenta de descobertas, de alegrias, da atenção participativa a tudo o que existe e acontece ao nosso redor, de interesse por aquilo que é belo, bom, verdadeiro. É assustador e preocupante quando alguém diz: “estou satisfeito com o seu trabalho, ou com o seu texto, a sua aula, o seu empenho, o seu modo de ser”. É como se dissesse que nada mais se deseja, que o ponto atual é o seu limite, que nada mais além se pode esperar, que está bom como está.

Estar satisfeito com a situação, com o trabalho, com a missão, significa apenas repetir e nunca criar, inovar, refazer, modificar. Um bom filme é aquele que, quando termina, ficamos insatisfeitos, parados, olhando quietos para a tela, com questionamentos fervilhando no interior. Um bom livro é aquele que, quando terminamos a leitura, o deixamos apoiado no colo, pensativos e distantes, imaginando outros finais possíveis. Uma boa festa, um bom jogo, um bom passeio, uma boa celebração, é aquela que queremos que se prolongue.

Não nascemos prontos, somos seres de insatisfação e aspiramos viver o impulso do “magis”. A cada dia, a cada mês, a cada ano, sou a minha mais nova edição (revisada e, às vezes, um pouco mais ampliada). A insatisfação evoca abrir-nos para o bem, para o melhor, é acolher imagens e vozes que provém das profundezas inquietas, que são emitidas com apelo específico e que não podem ser sufocadas

A insatisfação queima dentro e nos  desafia permanentemente

O ser humano é criado para…” (EE. 23). O ser humano tem, gravado nele, um caráter projetivo, não acabado, aberto, eternamente futuro. O “para” de Inácio é que mantém acesa a chama da insatisfação existencial, ou seja, a abertura radical que o faz ultrapassar a realidade que já é, superar os limites de sua natureza. Para a espiritualidade inaciana, a realidade humana diante de Deus é processo. Deus em nós nos constitui em criatividade contínua, em impulso “para”, em um “sendo” sempre inacabado. Na Graça e por causa da Graça somos uma insaciável busca.

Movido pela lealdade e pelo desejo do “magis inaciano” e do maior serviço aos demais, sentimos despertar em nós um dinamismo que nos leva a estar sempre em busca, com um coração insatisfeito. Aqui entra o discernimento como um modo de buscar para servir melhor e dar maior densidade à vida.

Grande no sonhar e concreto no atuar, mas sempre avante

A pedagogia de Inácio é uma pedagogia de busca, de coração inquieto, particularmente neste nosso mundo globalizado, de profundas transformações, de ruptura de certezas e seguranças. O mundo que vem é melhor que o que temos hoje em dia e depende de nós para torná-lo melhor.

 Texto Bíblico  Is 40, 25-31

 

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