“Pois Deus e o mundo não são adversários, mas diferenças que se amam”

 Uma vez experimentado, durante o processo dos Exercícios, o encontro com o Deus vivo, transcendente, totalmente outro, que a acolhe no seu amor, na sua misericórdia, a pessoa começa a ver os homens e as mulheres no mundo como Deus os vê. Precisamente por ter-se encontrado com o Deus Amor, a pessoa torna-se menos alienada, mais encarnada na realidade e mais comprometida com os irmãos e irmãs no mundo, sobretudo com os mais pobres, os mais sofridos e marginalizados, é aquela que mais se compromete com a justiça e é a que mais desenvolve uma criatividade eficaz na história, com obras que nos surpreendem.

O ponto de partida é a contemplação do mistério da Encarnação de Jesus Cristo (EE 101-109). Desde o 1º preâmbulo, a contemplação da Encarnação está toda ela estruturada e dinamizada pelo olhar. Com espantosa audácia, Santo Inácio nos apresenta um Deus contemplativo que olha e vê, um Deus comprometido com a vida e a salvação do gênero humano, um Deus compassivo que se deixa atingir e comover pela miséria e dor humana. Este foi o olhar de todos os convertidos, de todos os místicos, de todos os apóstolos.

Contemplar Deus que contempla o mundo

O exercício da contemplação da encarnação consiste em acompanhar o olhar amoroso e compassivo de Deus sobre o mundo, em ver a humanidade com os olhos de Deus. Este olhar torna-se um convite a incorporar-nos à contemplação que Deus faz do mundo, que é a base, a alma de toda ação apostólica. Por isso, contemplar o mundo a partir de Deus, será, paradoxalmente, um convite a encarnar-se no mundo com Deus para salvá-lo. “A arte de olhar a humanidade à maneira de Inácio, é reflexo da bondade, benignidade, simpatia de Deus pelo ser humano. É daqui também onde brota o reconhecido humanismo como característica da espiritualidade inaciana:  uma visão completa e amável do ser humano, de seus problemas e vicissitudes, uma sensibilidade para todo valor humano e um grande interesse em promover o ser humano enquanto tal, consciente de que isso forma parte da Redenção que se iniciou com a vinda do Verbo” (Iglesias).

O exercitante, adentrando-se na Humanidade de Cristo, sente brotar em si entranhas de misericórdia, levando-o ao compromisso em favor dos confusos, faz-se colaborador da salvação que Jesus realiza. Esta referência permanente à humanidade de Cristo se converte em critério básico de todo processo espiritual. Aproximar-se do mistério do Filho é aproximar-se do ser humano, a quem Deus quer salvar: “Façamos redenção”. Nesse façamos o exercitante escuta o chamado para seguir e assumir, com Cristo, a causa do ser humano, pois pelo mistério da encarnação Cristo se uniu a toda humanidade.

O mistério da encarnação é um ato de fé no ser humano e em seu valor

Um ato de fé por parte de Deus. A humanidade pode acolher a Deus em Cristo e iniciar com Ele um história nova, um caminho novo. O mundo no qual Deus se encarnou é o nosso mundo, o mundo em que vivemos, com suas divisões e injustiças, ódios e mortes. O mundo dos desesperançados e desesperados. Com grande simplicidade, Inácio esboça um quadro da confusa complexidade e problematicidade do mundo. O exercitante deve dizer a si mesmo: “eu pertenço a este mundo, é o âmbito de minha existência, estou imerso em sua confusa variedade e em sua problemática, que parece sem saída. Ao enfrentar-me com os altos e baixos da realidade mundial, dos destinos dos povos, dos âmbitos culturais, e ao esforçar-me em participar verdadeiramente neles, vou tomando maior consciência de mim mesmo”.

Sabemos que os Exercícios Espirituais não são uma “privatização interior”, senão que neles o exercitante passa, por amor pessoal ao Filho de Deus, a formar parte de seu mesmo processo de encarnação até à plena e total solidariedade com a condição humana. Deste modo, esvaziando-se, participa ativamente da solidariedade de Deus com os homens e mulheres, que é o centro da salvação. Ou, se preferimos, penetra na nova solidariedade humana em Cristo, que é a autêntica plenitude do ser humano, sua verdadeira vocação original.

A pessoa inaciana não é aquela que, por medo, se distancia do mundo, mas é aquela que, movido por uma radical paixão, desce ao coração da realidade em que se encontra, aí se encarna e então revela os traços da velada presença do Inefável, “pois Deus e o mundo não são adversários, mas diferenças que se amam”.

Texto Bíblico   Hb 2, 1-18 / Rm 8, 1-17 / Ef 1, 3-14 / Gl 6, 1-7 / 2Cor 5, 11-21 / 1Jo 1, 1-4

 

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