Eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer.”
Conceição Evaristo

O lugar mais perigoso para uma mulher é dentro da própria casa. A maioria dos agressores são homens do convívio familiar-afetivo da vítima. Essas afirmações são amplamente conhecidas no tocante à violência contra a mulher. Nesse momento em que precisamos ficar em casa para garantir a contenção da circulação e infecção pela COVID-19, o impacto da crise sanitária sobre a violência contra a mulher precisa ser uma preocupação pública. 

No relatório “A dor e a luta: números do feminicídio”, lançado em março de 2021, a Rede de Observatórios da Segurança aponta que 1.823 casos de violência contra as mulheres foram monitorados em 5 estados do Brasil — Bahia, Ceará, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo — durante o ano de 2020. Os dados são monitorados a partir de jornais locais dos respectivos estados e por postagens em redes sociais. Das oito categorias de violência contra a mulher no monitoramento, feminicídios e tentativas de feminicídios são os maiores registros no banco de dados. Nesse processo, foi perceptível o aumento de casos durante a pandemia. 

Dos 1.823 casos monitorados, 449 foram feminicídios. Isso significa cinco registros desse tipo de crime a cada dia. Em 58% dos casos de feminicídios e 66% dos casos de agressão (física, sexual etc.), os agressores tinham ou tiveram relacionamento afetivo com as vítimas. Chamou a atenção, ainda, o número de registros de transfeminicídios: foram 21 casos, sendo 13 deles apenas no Ceará. O acesso à arma de fogo, que tem sido uma prioridade do Governo Federal, é um agravante desse cenário. Uma arma em casa é risco para toda a família, mas principalmente para mulheres e crianças. 

Os dados coletados conseguem revelar o cenário dessa violência durante o período de crise sanitária, mas, apesar disso, ainda há um apagão de informações sobre as vítimas. As matérias jornalísticas, frequentemente produzidas a partir das informações fornecidas pelas polícias, não dão conta, na maioria dos casos, sobre a cor/raça das mulheres assassinadas. No entanto, nos casos onde essa informação estava presente, foi possível relatar que a maioria destas são mulheres negras.

A produção cidadã de dados se coloca como uma fonte importante para fomentar o debate público acerca dos indicadores de violência. Para além dos dados consolidados e da análise de estatísticas, é possível perceber, nesse tipo de monitoramento, as circunstâncias em que essas mulheres foram assassinadas. Com isso, podemos traçar padrões ou notar diferenças entre os casos. Essas informações também são significativas para indicar caminhos possíveis para enfrentar essa violência.

Nesse contexto de continuidade de medidas de isolamento social, que são necessárias, é importante que as instituições se mobilizem para garantir maior acesso dessas vítimas às redes de denúncia e acolhimento. É preciso que as medidas protetivas sejam expedidas em tempo ágil e que exista acolhimento necessário para retirar as vítimas dos contextos de violência. Além disso, é imprescindível a responsabilidade de cada pessoa que é testemunha de uma situação de agressão. Antes de um feminicídio acontecer, muitas mulheres são vítimas de vários outros tipos de violências perpetradas pelos agressores. Ao “meter a colher” em uma briga, o indivíduo pode estar evitando que mais um feminicídio aconteça. É dever da comunidade e, principalmente, do Estado, proteger essas mulheres em situação de vulnerabilidade.



Texto de Ana Letícia Lins

Mestra em Sociologia e graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará (UFC).Pesquisadora da Rede de Observatórios da Segurança e do Laboratório de Estudos da Violência (LEV/UFC).

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