Uma breve contextualização do papel da mulher na Igreja

O cristianismo histórico enfrentou desafios ao tentar compreender o comportamento de Jesus em relação às mulheres desde os primórdios. Embora os evangelhos expressam admiração por algumas mulheres, também mostram uma estranheza subjacente. Os próprios apóstolos, incluindo Pedro, não compreendiam totalmente a maneira como Jesus tratava as mulheres. Essas dificuldades contribuíram para uma memória distorcida do papel das mulheres na tradição cristã.

Esse estigma somado a uma tradição histórica patriarcal e enraizada no machismo refletem um padrão de desvalorização das mulheres na cultura cristã e em muitas outras culturas. Jesus, ao valorizar o afeto e o perfume de uma mulher, desafiava as normas culturais da época e defendia a preservação da memória da ternura feminina. No entanto, essa visão sempre enfrentou resistência dentro do cristianismo e em outras culturas.

O século XX testemunhou um despertar da mulher, rompendo séculos de silêncio e submissão. Na década de 1940, os primeiros indícios sutis de mudança surgiram no universo feminino, refletidos na diminuição da frequência à missa dominical. Apesar disso, poucos reconheceram esse fenômeno, atribuindo a queda na participação religiosa a outros fatores, como a secularização.

O surgimento da pílula anticoncepcional oral na década de 1960 foi um marco importante. Permitiu às mulheres controlar sua fertilidade e buscar uma vida mais autônoma e equilibrada. Essa revolução silenciosa na esfera privada teve implicações profundas na sociedade, permitindo que as mulheres participassem mais ativamente no mercado de trabalho e reconfigurando as relações de gênero e trabalho.

Um recente relatório sobre a participação das mulheres na Igreja Católica destaca a disparidade entre sua representação na liturgia e sua presença nos cargos de decisão e governança. Apesar de serem maioria nos participantes das atividades da igreja, as mulheres ocupam poucos papéis de liderança e têm suas contribuições subvalorizadas. Embora a ordenação de mulheres ao sacerdócio tenha sido descartada pelo Papa Francisco, reflexões recentes destacam a importância de valorizar a contribuição das mulheres para a igreja. Organizações como a União Internacional das Superioras Gerais denunciaram o sexismo na igreja e a desvalorização das religiosas.

O Papa Francisco tem se destacado por seus discursos favoráveis às mulheres, tanto na Igreja quanto na sociedade. Ele enfatiza o papel essencial das mulheres na fé, citando exemplos como as primeiras testemunhas da ressurreição e figuras femininas que influenciaram sua própria jornada espiritual. O Papa defende uma teologia mais profunda da mulher na Igreja e condena a exploração das mulheres, destacando a diferença entre serviço e servidão. Francisco aponta a necessidade de oferecer mais espaços e responsabilidades às mulheres na Igreja e na sociedade, promovendo sua participação plena em todas as esferas da vida. Ele critica a mercantilização do corpo feminino e a subordinação das mulheres, chamando a atenção para a importância da reciprocidade e da igualdade de gênero. Além disso, o Papa destaca o papel das mulheres como portadoras de harmonia, citando a transmissão da fé e a figura de Maria como exemplos. Ele elogia a contribuição das mulheres para a alegria e a beleza do mundo, ressaltando a importância da ternura que elas trazem para as relações humanas.

As mulheres na história de Jesus

Jesus demonstrou um profundo respeito e interesse pelo bem-estar das mulheres durante sua vida pública, nunca as menosprezando ou ridicularizando. Ele curou, exorcizou, perdoou e restaurou as mulheres, mostrando uma preocupação especial pelas mais necessitadas.

Sua mensagem e prática incluíam as mulheres em igualdade com os homens, desafiando as injustiças sociais e oferecendo uma visão do Reino de Deus onde todos são valorizados igualmente. Suas parábolas e ensinamentos também honravam as mulheres, reconhecendo suas realidades humanas como dignas e significativas.

Além disso, as mulheres desempenharam um papel ativo em seu ministério, acompanhando-o, apoiando-o e permanecendo fiéis durante sua crucificação e ressurreição. A crucificação de Jesus é vista por algumas teólogas feministas como uma crítica ao patriarcado, mostrando o poder do amor abnegado em oposição ao domínio masculino.

No contexto da história e da tradição cristã, a inclusão e o respeito de Jesus pelas mulheres têm sido fundamentais para desafiar as estruturas de poder patriarcais e promover a igualdade de gênero.

Em meio a dor da cruz, Jesus vê o olhar de uma mulher

“Diante da Cruz de Jesus, permaneceram sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria de Cléofas, e Maria Madalena.” (João 19,25)

Na trajetória e missão de Jesus, encontramos duas formas de paixão: a primeira é a paixão pela vida, pelo Reino, pelo compromisso com os mais desfavorecidos e excluídos. Essa paixão reflete uma escolha feita por Jesus, mantida fielmente até o fim.

A segunda paixão é a da cruz, imposta pelas autoridades religiosas e civis. Não é uma escolha de Jesus, nem está de acordo com a vontade do Pai. Ela simboliza a violência, o ódio, o fechamento diante da proposta de vida revelada por Jesus.

Nos relatos da Paixão de Jesus, vemos a presença das mulheres que vivem a fidelidade ao seguimento de Jesus desde a Galileia. Enquanto os discípulos fogem, elas permanecem “de pé junto à Cruz”, em solidariedade e compromisso. Sua presença foi um conforto para Jesus no momento trágico de sua vida: ele percebeu que não estava sozinho, pois suas amigas estavam com ele, compartilhando de seu sofrimento.

Os evangelistas falam frequentemente das mulheres; o relato da crucificação revela suas presenças como testemunhas, mediadoras e verdadeiras discípulas. Mateus, Marcos e Lucas indicam que as mulheres “observavam a cena de longe”. João, que tem uma perspectiva interna, as coloca junto à cruz.

Elas estão lá, à nossa frente, em silêncio. É através de seus corpos, gestos, mãos, olhos e silêncio que elas se comunicam. A linguagem delas é a linguagem do relacionamento. Sua capacidade de permanecer nessas circunstâncias mostra seu amor profundo. Elas nos ensinam sobre resistência e fidelidade, sobre uma presença emocionante. Estão juntas, expostas a olhares alheios, como uma comunidade de discípulas em torno de seu Mestre, que agora as ensina, sem palavras, uma sabedoria maior.

Mesmo diante da impotência, elas não se afastam da dor de verem aquele a quem amam sofrer; ao contrário, se expõem ao olhar Daquele cujo rosto foi desfigurado.

Essas mulheres nos ensinam que “subir a Jerusalém” é enfrentar o conflito e a rejeição por defender os pobres e os pequenos; é enfrentar a perseguição devido ao compromisso com a vida; é entender que os grãos que caem na terra precisam morrer para germinar e multiplicar a vida.

Neste dia, a presença silenciosa das mulheres junto à Cruz nos ensina a compartilhar o sofrimento, a abrir nossos corações e a despertar a sensibilidade solidária diante do sofrimento humano. Nos humanizamos quando nos permitimos ser tocados pela compaixão, quando deixamos que ela guie nossas ações e decisões.

O anúncio da Ressurreição tem a voz de uma mulher

1 No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi ao túmulo de Jesus bem de madrugada, quando ainda estava escuro. Ela viu que a pedra tinha sido retirada do túmulo. 2 Então saiu correndo e foi encontrar Simão Pedro e o outro discípulo que Jesus amava. E disse para eles: «Tiraram do túmulo o Senhor, e não sabemos onde o colocaram

3 Então Pedro e o outro discípulo saíram e foram ao túmulo. 4 Os dois corriam juntos. Mas o outro discípulo correu mais depressa do que Pedro, e chegou primeiro ao túmulo. 5 Inclinando-se, viu os panos de linho no chão, mas não entrou. 6 Então Pedro, que vinha correndo atrás, chegou também e entrou no túmulo. Viu os panos de linho estendidos no chão 7 e o sudário que tinha sido usado para cobrir a cabeça de Jesus. Mas o sudário não estava com os panos de linho no chão; estava enrolado num lugar à parte.

8 Então o outro discípulo, que tinha chegado primeiro ao túmulo, entrou também. Ele viu e acreditou. 9 De fato, eles ainda não tinham compreendido a Escritura que diz: «Ele deve ressuscitar dos mortos10 Os discípulos, então, voltaram para casa.
(Jo 20, 1-10)

Neste domingo de Páscoa, celebramos a ressurreição de Jesus, o evento central da fé cristã, simbolizado pelo Círio Pascal que representa a presença do Cristo Ressuscitado. Maria Madalena, ao ir ao túmulo de Jesus no primeiro dia da semana, enfrenta sentimentos de desassossego e intranquilidade. Embora seja movida pelo amor profundo por Jesus, ela se confronta com a aparente contradição entre sua fé no Messias e a morte de Jesus na cruz.

Ao descobrir que a pedra foi removida do túmulo, Maria Madalena busca imediatamente Pedro e João para compartilhar a notícia. Enquanto Pedro constata apenas a ausência do corpo de Jesus, João, movido pelo amor, acredita na ressurreição ao ver o túmulo vazio. Esses eventos nos convidam a refletir sobre nossa própria atitude diante do mistério da ressurreição, especialmente em meio às dificuldades e desafios que enfrentamos atualmente.

O fato de as mulheres serem as primeiras a testemunhar a ressurreição é considerado um forte argumento para a historicidade dos relatos bíblicos, já que a lei judaica não reconhecia o testemunho de mulheres. Além disso, escritos cristãos antigos destacam o papel de liderança de mulheres como Maria de Madalena nas primeiras comunidades cristãs, refletindo debates sobre o papel das mulheres na igreja primitiva.

O apagamento histórico de Maria Madalena como líder espiritual é contrastado pela sua proeminência nos Evangelhos como uma das principais discípulas de Jesus. Este apagamento começou no Novo Testamento e foi perpetuado ao longo da história da Igreja, relegando-a a um culto quase clandestino. Apesar disso, teólogos e historiadores estão reconstruindo sua imagem e história, buscando corrigir distorções causadas por uma teologia patriarcal.

O gesto do Papa Francisco ao instituir a Festa de Maria Madalena como “apóstola dos apóstolos” foi considerado surpreendente e significativo. Isso levanta questões sobre o papel das mulheres na Igreja hoje e desafia as estruturas que limitam sua participação em posições de liderança. Novas pesquisas estão contribuindo para uma melhor compreensão do significado do termo “Madalena” e seu papel na comunidade de discípulos de Jesus.

A história de Madalena, levada a sério, tem o potencial de provocar uma revolução na Igreja, minando as bases do “não” às mulheres nos mais altos ministérios eclesiais. Embora haja avanços, como a criação de comissões para estudar o diaconato feminino e a nomeação de mulheres para cargos no Vaticano, ainda há resistência significativa dentro da hierarquia da Igreja. Movimentos de base liderados por mulheres continuam a desafiar essas estruturas, seguindo o exemplo de Madalena como a primeira apóstola a proclamar a Ressurreição.

Bibliografia

As mulheres junto ao Crucificado.
https://ignatiana.blog/2023/04/06/sso-2023-6/, acesso em 15/03/2024.

Jesus e as mulheres: “Vocês estão livres” (II). Artigo de Elizabeth Johnson. https://www.ihu.unisinos.br/noticias/531209-jesus-e-as-mulheres-voces-estao-livres-parte-dois, acesso em 15/03/2024.

Francisco e o papel das mulheres na Igreja. https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2018-03/francisco-e-o-papel-das-mulheres-na-igreja.html, acessado em 17/03/2024.

Sexta-feira da Semana Santa: as mulheres junto ao Crucificado. https://www.ihu.unisinos.br/categorias/42-comentario-do-evangelho/627719-sexta-feira-da-semana-santa-as-mulheres-junto-ao-crucificado, acessado em 15/03/2024.

Um amor mais forte que a morte. https://www.ihu.unisinos.br/categorias/42-comentario-do-evangelho/597944-um-amor-mais-forte-que-a-morte, acessado em 15/03/2024.

Maria Madalena: a maior e a primeira entre os apóstolos. https://www.ihu.unisinos.br/categorias/192-paginas-especiais/611316-maria-madalena-apostola-dos-apostolos#:~:text=Nem%20prostituta%2C%20nem%20esposa%20de,Ap%C3%B3stolos%E2%80%9D%2C%20defende%20Christine%20Schenke, acessado em 17/03/2024.

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