“Vi a Deus face a face e, todavia, minha vida foi poupada”
(Escrito por Gabriel dos Anjos Vilardi, SJ)
Vivemos tempos difíceis ou, como gosta de repetir o Papa Francisco, bem mais do que uma “época de mudanças” experimentamos uma “mudança de época”. A pandemia da COVID-19 apenas escancarou as crises socioeconômica, política e ecológica que nos assolam há muito. Como Inácio em Pamplona, também estamos cercados por muitos conflitos e injustiças, naquilo que o pontífice denuncia como uma “terceira guerra mundial em pedaços”.
E, com essa conjuntura, tal qual na Primeira Semana dos Exercícios Espirituais, diante do Cristo Crucificado, algumas questões inadiáveis se colocam perante a humanidade (EE 53): o que fizemos com os dons da Criação? O que estamos fazendo com toda a diversidade da nossa Casa Comum? O que o Senhor quer que façamos, como família humana, frente a essas situações-limite?
Como os nossos, aqueles eram tempos turbulentos. Finda a Idade Média e com os auspícios da Modernidade, o jovem Loyola viveu em um período efervescente de transição, com inúmeras transformações políticas, sociais e religiosas. Entre os marcos dessa nova era podemos citar as grandes navegações, o Renascimento cultural e a Reforma protestante.
Ao se colocar a serviço do Duque de Nájera, Inácio, como qualquer jovem adulto, ansiava por aventuras e pelos grandes feitos pessoais. É verdade que era um homem ambicioso, vaidoso e voluntarista. Mas, sobretudo, era corajoso e cheio de desejos. Seu coração ardia pelos ideais que o povoavam, naquela altura.
Uma bala de canhão dá início a um novo caminho
Posteriormente, durante seu longo processo de conversão, irá perceber a importância dos desejos em toda experiência humano-espiritual. São eles o combustível da caminhada de cada cristão. E, ao invés de reprimi-los ou nega-los, vai ensinar que é preciso tomar consciência e valorizar aquilo que somos e trazemos em nós. Só assim haverá um livre e efetivo discernimento.
Mesmo contra todas as adversidades que se apresentavam, o combatente de Pamplona estava convencido de que era preciso permanecer nos propósitos iniciais e resistir até o fim. Resoluto, inspirou os demais e perseverou com todas as suas forças, até ser atingido por uma bala de canhão. Essa derrota momentânea, longe de significar a sua ruína final, resultou numa favorável oportunidade de reorientação de sua vida.
O período de convalescença em Loyola lhe possibilitou abrir-se a escuta do Senhor. Interpelado pelo Deus da Vida, percebeu que Jesus lhe oferecia uma vida plena e repleta de sentido, voltada ao serviço dos demais. Não sem algumas incompreensões e impaciências, o cavaleiro descobriu em si novos e mais profundos desejos e deixou-se transformar em um peregrino “contemplativo na ação”.
Mas, fazer memória dessas peripécias inacianas faz algum sentido ou trata-se de apenas mais uma boa narrativa literária, pertencente a um passado distante e já enterrado? Assim como a Trindade contempla o mundo (EE 101-109) e decide se encarnar na realidade histórica, também nós somos chamados a percebermos os sinais dos tempos de nossos contextos sociais e refletirmos para tirar algum proveito.
Imersos em um sistema perverso, que privilegia uma economia excludente e uma cultura do descarte, imperioso nos questionarmos: quantas jovens têm suas vidas ceifadas em virtude de uma sociedade machista e patriarcal? Quantos empobrecidos são empurrados para o subemprego, sem qualquer garantia e proteção social? Quantos jovens negros são vítimas do racismo estrutural e da violência policial?
Ainda assim, cheios de esperança, temos que reconhecer que, em situações provavelmente muito mais desfavoráveis do que Inácio, esses jovens não abandonam a luta. Podem lhes roubar tudo, menos os sonhos de uma vida mais digna. Nesse sentido, oxalá os retrocessos dos últimos tempos sejam as balas de canhão que despertarão os desejos mais profundos de tantos jovens, marginalizados pela injustiça.
O exemplo do peregrino de Loyola nos sirva de motivação para um ousado discernimento de uma existência comprometida, que saia do “próprio amor, querer e interesse” (EE 189). Peçamos a graça de que a celebração dos 500 anos da ferida de Inácio seja uma ocasião propícia para contemplar as muitas feridas do começo deste século. E, convalescentes neste período pandêmico, não sejamos surdos ao chamado do Senhor, mas prontos e diligentes para cumprir Sua vontade (EE 91) de “vermos novas todas as coisas”.
Texto Bíblico Gn 32, 23-32
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