Pe. Edson Tomé, SJ
No texto da semana anterior falei sobre o pluralismo religioso no mundo contemporâneo, discutimos sobre a Teologia do Pluralismo religioso e como esse modo de pensar nos chama a atenção para três paradigmas existentes: exclusivismo, inclusivismo e pluralismo. Ao final dessa reflexão, fomos questionados sobre como viver uma fé cristã em um mundo com tantas religiões e como viver a fé cristã em um contexto no qual existem distintas maneiras de ser cristão.
Agora, convido você a ir mais adiante. Este texto é o terceiro passo na estrada que estamos trilhando. Agora, faz-se necessário saber que a consciência de se sentirem cercados por uma pluralidade de religiões levou muitos fiéis, tanto dentro quanto fora da tradição cristã, a questionarem seriamente uma verdade que abrange mais do que sua própria religião. Por isso, os fiéis cristãos de hoje são desafiados por essa diversidade, seja pelo contato com fiéis de outras religiões, pelo trabalho compartilhado ou pela migração; seja porque estão vivenciando o divino neste novo contexto de diversas identidades e práticas religiosas de diferentes tradições.
Tal realidade tem levado muitas pessoas a experiências e mudanças em suas próprias vidas. Um exemplo disso é a influência do budismo zen na vida de muitos cristãos, utilizado como técnica para melhor se aproximar do divino. Hoje, mais do que antes, há uma consciência maior sobre a presença das diferentes religiões, demonstrando que existem muitas maneiras de ser religioso, de buscar a Deus, de experimentar a paz e de encontrar o sentido para a vida, expectativas comuns à vivência religiosa. Além disso, para muitos já é claro que chegou a hora de todas essas religiões encerrarem seus conflitos e disputas para começarem a cooperar diante dos problemas relacionados ao sofrimento e à injustiça, que massacram milhares de cristãos no mundo.
Acredito que o nosso continente está se deparando com a realidade e o desafio do pluralismo religioso de maneira evidente e inescapável. Embora seja um continente que tenha se tornado predominantemente cristão devido à imposição colonial, cresce o interesse e a coragem de explorar outras experiências religiosas ou buscar sua ancestralidade conjuntamente à construção da própria identidade. Isso se deve, sobretudo, ao fato de que, agora, cresce a consciência sobre a necessidade de buscar o caminho que melhor expresse a própria humanidade, no qual seja possível ter um encontro radical com Deus.
Ao tratarmos desse exemplo do budismo e do cristianismo “estamos falando de dois caminhos percorridos pela humanidade: o do Oriente e o do Ocidente. Dois caminhos paradigmáticos, grandiosos em sua riqueza interior, diferentes e, no entanto, complementares” (Boff, Leonardo. Espiritualidad: un camino para la transformación. p. 47). São, portanto, duas experiências dotadas de enorme força de atração e frequentadas, no conjunto, por uma imensa maioria da humanidade. “Numa se dá a comunhão pessoal com Deus, que inclui o todo. Na outra, existe a comunhão com o todo, que inclui a Deus (Boff, Leonardo. Espiritualidad: un camino para la transformación. p. 48). Respectivamente: o percurso ocidental e o oriental.
Essa realidade se manifesta em dois níveis: o das religiões e o da dupla pertença. Trata-se de pessoas que encontram, nas palavras de Knitter (Conferencia sobre la doble pertenencia: un fenómeno crecente en los Estados Unidos. p.1-2), “abrigo em duas religiões distintas”. Isso acontece quando “o acolhimento que encontram em uma delas não lhes é suficiente” para se encontrarem consigo mesmas ou com o divino. Em discurso aos jovens em Singapura em 13 de setembro de 2024, no Encontro inter-religioso, o Papa Francisco afirmou:
Uma das coisas que mais me impressionou em vós, jovens aqui presentes, foi a capacidade para o diálogo inter-religioso. Trata-se de algo muito importante, porque se começardes a discutir: “A minha religião é mais importante do que a tua…”, “A minha é a verdadeira, a tua não é verdadeira…”. Para onde é que isso vos leva? Para onde? Alguém pode responder? [Responde um: “Destruição”]. É isso. Todas as religiões são um caminho para nos aproximarmos de Deus. E faço esta comparação: são como línguas diferentes, diversos idiomas, para chegarmos lá. Mas Deus é Deus para todos. E porque Deus é Deus para todos, todos nós somos filhos de Deus. “Mas o meu Deus é mais importante do que o vosso!” Será que isto é verdade? Só há um Deus, e nós, as nossas religiões são linguagens, caminhos para chegar a Deus. Uns sikh, outros muçulmanos, outros hindus, outros cristãos, são caminhos diferentes. Entendido? Porém, o diálogo inter-religioso entre os jovens requer coragem. E a juventude é a idade da coragem. Porém, tu podes usar essa coragem para fazer coisas que não te ajudarão ou, em vez disso, ser corajoso para seguir em frente e para o diálogo.
Obviamente, não podemos interpretar o discurso de Francisco como filiado ao descarte da crença cristã frente a outras experiências. É na verdade uma provocação à integração. Trata-se de reinterpretá-las, revisitá-las e reapropriar-se das crenças e da experiência cristã. Assim, surgem questionamentos como: o que significa, então, a dupla pertença? A pertença espiritual múltipla — ou global — não seria, na verdade, uma forma de promiscuidade religiosa? Estou “dormindo” ou “vagando” espiritualmente por aí? Mais precisamente, estou traindo Jesus?
Knitter (Conferencia sobre la doble pertenencia: un fenómeno crecente en los Estados Unidos. p. 2-3) nos ajuda a responder tais indagações ao afirmar:
Creio que a pertença espiritual múltipla, assim como a cidadania global, é expressão da hibridez que sempre marcou a identidade humana — ou nacional — e que agora a marca com ainda mais urgência no contexto contemporâneo. (…) Todos nós somos, de certo modo, seres híbridos: nossa identidade não está “gravada em pedra”. É argila maleável, que se transforma constantemente à medida que conhecemos outras identidades, acrescentamos elementos a elas ou modificamos a nossa própria.
A realidade da dupla pertença, no campo religioso, é um fenômeno prático e de profundo alcance espiritual e teológico. Refere-se à situação de pessoas que, profundamente imersas em duas tradições religiosas — ou mesmo em duas Igrejas distintas —, vivenciam ambas como suas próprias.
Hoje em dia, na Índia, alguns se sentem herdeiros de duas tradições religiosas. O hinduísmo e o budismo não são para eles duas realidades exteriores, mas parte de sua própria herança. Assim, realizam um esforço consciente para integrá-las em sua vida. Ocasionalmente, consideram-se hindus ou budistas-cristãos. Trata-se, talvez, menos de um processo de integração do que de um contraponto sempre presente e incessantemente em tensão rumo à harmonia. (Torres Queiruga, Andrés. Diálogo de las religiones y autocomprensión cristiana. p. 138)
A dupla pertença em nosso continente consiste na filiação a duas tradições religiosas ou a duas igrejas cristãs em razão do ressurgimento do movimento religioso contemporâneo, que favorece a experiência religiosa em várias comunidades. Muitos desses fiéis, oriundos da tradição católica, saem em busca de algo mais em outras denominações cristãs, mas preservam o vínculo do batismo na Igreja Católica. Esse fenômeno é bastante comum em cidades, bairros e paróquias.
Esse trânsito, conforme Mora Arboleda, apresenta três comportamentos religiosos marcantes. O primeiro é o do peregrino, que transita de grupo em grupo e de movimento em movimento, sempre em busca das melhores “pechinchas” e “ofertas” espirituais. O segundo corresponde àqueles que cultivam uma vida interior espiritual fortemente vinculada à emoção, à afetividade, à corporalidade e à percepção da ação extraordinária de Deus em cada momento. Trata-se de uma religiosidade de caráter emocional, expressa em grandes espetáculos coreográficos, curas instantâneas e música, que sinalizam uma nova forma de vivenciar a fé. Frequentemente, essa expressão religiosa recorre à sugestionabilidade das massas e à interpretação transcendente de toda realidade imanente. Por fim, o terceiro comportamento é o daqueles que, inseguros diante de um mundo multiperspectivista — que percebem como relativista e subjetivista —, buscam refúgio em posturas integristas e fundamentalistas, chegando alguns, inclusive, à beira do extremismo violento.
Nesse sentido, a realidade que interpela é a mesma que vem desafiando a reflexão teológica contemporânea: a identidade cristã, questionada e, ao mesmo tempo, atraída pela grande diversidade religiosa, o que abre caminho para a fragmentação, um fenômeno cada vez mais presente em nosso contexto, que não cessa de crescer e de provocar inquietações. Montes Arboleda recorda que, já há alguns anos, o tema foi objeto de reflexão no Congresso Novas ofertas religiosas: renovação ou decadência.
A fragmentação religiosa e espiritual consiste no processo pelo qual famílias oriundas de uma mesma tradição de fé subdividem-se em pequenos grupos no interior dessa própria tradição. Assim, não é incomum que membros de uma mesma família participem de igrejas diferentes ou até de religiões distintas. No âmbito cristão, esse fenômeno tornou-se recorrente, repercutindo em mudanças significativas na vida comunitária e familiar.
No contexto eclesial, essa fragmentação provoca confusão doutrinária, perda de identidade, divisões internas e situações contrárias ao ideal do Reino de Deus, tornando-se obstáculo para uma convivência harmoniosa e respeitosa. Seus efeitos atingem, de modo particular, o núcleo familiar. Hoje, é cada vez mais comum encontrar lares cujos membros estão vinculados a distintas comunidades cristãs.
Exemplo disso é a comunidade de Altos de la Florida1, onde coexistem igrejas de diferentes denominações. Observou-se que algumas famílias originalmente católicas, embora hoje vinculadas a outras tradições cristãs, ainda procuram batizar seus filhos segundo o rito católico. Tal prática revela a ausência de clareza quanto à identidade cristã e eclesial à qual pertencem. Nesse sentido, Lara Mayorga (La diversidad en Colombia tendencias y perspectivas. p. 51) considera que “geralmente as pessoas que mudam de religião ou de denominação cristã — isto é, de entidade eclesial — não possuem um verdadeiro conhecimento das doutrinas próprias do movimento que abandonam”.
Situação semelhante ocorre em outros bairros populares, onde se encontram relatos de pessoas que, tendo pertencido à Igreja Católica em algum momento, migraram para outras denominações por não encontrarem, segundo suas percepções pessoais, resposta satisfatória para suas necessidades espirituais ou para sua busca por Deus.
Além disso, o convívio escolar com colegas de diferentes denominações religiosas contribui para ampliar a percepção da diversidade de credos, em especial das múltiplas formas de viver o cristianismo dentro de uma mesma comunidade. Os dados do Censo de 2022 demonstram que as regiões sul e sudeste possuem maior incidência de diversidade religiosa. Isto faz com que em espaços de vida como a família, a escola, os bairros, comunidades eclesiais etc. crianças, adolescentes e jovens se desenvolvam em espaços de sociabilidade onde a diversidade seja um fato inegável. Essa realidade provoca um questionamento profundo sobre a própria identidade religiosa e desafia os fiéis a compreenderem e ressignificarem sua vivência espiritual. É a mobilidade religiosa.
Mobilidade religiosa refere-se ao trânsito de uma mesma pessoa por diferentes igrejas ou até por religiões distintas — muitas vezes consideradas antagônicas entre si — na busca por vivências espirituais significativas. Esse fenômeno decorre, em parte, da ampliação e diversificação dos credos existentes, bem como da naturalidade com que muitos indivíduos passam a se aproximar, simultaneamente, de duas ou mais expressões religiosas. Trata-se, assim, de um movimento cada vez mais frequente, presente em diferentes contextos sociais, desde bairros e comunidades locais até grandes centros urbanos e realidades globais.
Essa mobilidade permite ao fiel vivenciar sua fé em múltiplos contextos, acumulando experiências que, em conjunto, moldam sua compreensão religiosa. Nesse processo, a igreja de pertença, as crenças e as práticas espirituais tornam-se apenas uma entre diversas formas de perceber e lidar com a dimensão do sagrado. Assim, tanto a identidade religiosa dual quanto a dupla pertença podem revelar-se como realidades marcadas por uma centralidade comum: Jesus Cristo e o Evangelho, compreendidos à luz da tradição cristã. No entanto, há casos em que essa centralidade convive com a referência a outros caminhos espirituais, como o budismo ou outras tradições, sem que o indivíduo perceba contradição nessa vivência.
No âmbito da dupla pertença exclusivamente cristã, Cristo permanece como alimento espiritual essencial. Entretanto, a experiência de fé demonstra que, para alguns, a tradição de origem já não é suficiente para suprir plenamente suas necessidades espirituais dentro de uma única denominação. É nesse ponto que se consolida o núcleo da hibridez espiritual: a busca por complementaridade em outras expressões da fé cristã.
Para Lara Mayorga, a realidade da mobilidade religiosa evidencia que o “mercado religioso” contemporâneo impõe à Igreja o desafio de cultivar o diálogo interconfessional entre cristãos, aliado ao diálogo inter-religioso, com atenção às práticas culturais diversas, à busca de convergências e à consciência de que a Igreja de Jesus Cristo é una, ainda que se manifeste de formas plurais.
O acompanhamento cristão inaciano de jovens centra-se na experiência salvadora e libertadora revelada em Jesus Cristo. Seu objetivo deve ser acompanhar as juventudes para o encontro pessoal com Deus a partir e nos questionamentos e dilemas que vivenciam em sua vida real. Assim, os acompanhadores precisam ter sensibilidade para compreender a importância do questionamento religioso como elemento essencial na vida das juventudes.
O (a) acompanhador (a) de jovens ao compreender este diagnóstico aprofunda sua concepção sobre o fenômeno religioso juvenil. Passa a ter consciência dos condicionamentos, mas não sucumbe ao determinismo por crer na liberdade fundamental de cada jovem. O acompanhamento educativo, pastoral e/ou espiritual colabora para que os e as jovens possam libertar a sua liberdade para o encontro verdadeiro com Deus. Faz-se necessário ajudá-los a desvencilharem-se de visões infantilizadas de Deus, concepções exclusivistas da fé e experiências religiosas manipuladoras, fundamentalistas e violentas. Por isso, por meio do discernimento, o acompanhamento ajuda-os a assumirem com consciência o seu caminho.
É exatamente nesse ponto que se deseja enquadrar a questão da identidade cristã em meio à pluralidade. Essas constatações suscitam questões relevantes:
- Estaríamos diante de uma nova forma de conceber o cristianismo, na qual sua vivência se constrói em diálogo — ou até em interpenetração — com outras tradições religiosas?
- O cristianismo, em si, já não ofereceria, para alguns fiéis, elementos suficientes para nutrir plenamente a experiência existencial e espiritual?
- Como dialogar com os jovens do nosso tempo sobre a pluralidade religiosa contemporânea?
REFERÊNCIAS
Boff, Leonardo. Espiritualidad: un camino para la transformación. Santander: Sal Terrae, 2002.
Knitter, Paul F. Conferencia sobre la doble pertenencia: un fenómeno crecente en los Estados Unidos. Em: Curso sobre el Diálogo Interreligioso. Condiciones para un diálogo teológico, realizado nos dias 26-27 de Agosto, Bogotá, 2011.
Lara Mayorga, Hollman. La diversidad en Colombia tendencias y perspectivas. “El ser y el que hacer del movimiento ecuménico hoy en Colombia”. Simposio de Ecumenismo. 27-28 ago. de 2004. Bogotá, 2005.
Montes Alzate, Mario Carlos. Líneas teológicas y pastorales para un ecumenismo situado en nuestra realidad. “El ser y el que hacer del movimiento ecuménico hoy en Colombia”. Simposio de Ecumenismo. 27-28 ago. de 2004. Bogotá, 2005.
Mora Arboleda, Carlos. El ecumenismo, prioridad de la Iglesia colombiana. El ser y el que hacer del movimiento ecuménico hoy en Colombia. Simposio de Ecumenismo. 27-28 ago. de 2004. Bogotá, 2005.
Papa Francisco. Discurso do Santo Padre no Encontro inter-religioso com os jovens. Disponível em: <https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2024/september/documents/20240913-singapore-giovani.html>. Acesso em 15 out. 2025.
Torres Queiruga, Andrés. Diálogo de las religiones y autocomprensión cristiana. Santander: Sal Terrae, 2005.







