Giovani do Carmo Junior
Em nosso diálogo estamos tratando do fenômeno da liderança juvenil nas comunidades eclesiais e grupos juvenis. Elencar essa realidade nos ajuda a compreender e traçar caminhos para a formação de jovens líderes a partir do modo de proceder de Jesus Cristo. Liderar como ação de se colocar diante de um grupo exercendo um serviço parece não ser um dom inato e nem mesmo um elemento pré-existente em todo grupo e do mesmo modo. Parece que existem tantas formas de liderar quanto existem formas humanas de se organizar em grupo (CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. p. 45).
Ser líder na Grécia Clássica consistia em ser autônomo e autárquico. Ser governante de si sendo capaz de conduzir a si mesmo sem ser tutelado. Ser capaz de governar a si mesmo era condição imprescindível para ser capaz de governar a outros. Temos o caso de Alcibíades que aspirava governar Atenas. Sócrates o advertia que era preciso antes disso aprender a cuidar de si mesmo. Aprender a não ser escravo de si para não vir a ser escravo dos outros ou se tornar um tirano para os outros. Alcibíades, um jovem rico e belo, porém, não aprendeu a se conduzir. Assim, não foi capaz de cuidar de si mesmo para poder ser capaz de governar os outros (FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito).
As sociedades antigas compreendiam a necessidade de processos de formação de liderança. A função de liderar se desenvolve dentro do grupo em uma relação dialética com os outros e o contexto sociocultural. O modo de liderar se desenvolve condicionado pelo modo de autocompreensão da comunidade e dos indivíduos em seu laço social permeado por valores éticos e morais. Portanto, a todo momento estamos refletindo que os líderes de grupos juvenis tornam-se líderes através de processos educativos e rituais de reconhecimento desenvolvidos dentro de dinâmicas grupais permeados por fatores e valores socioculturais.
Queremos trilhar esse caminho de reflexão e construção em conjunto por meio de um referencial pedagógico cuja fonte é a espiritualidade inaciana e a força dinamizadora é o Magis. O fim é o próprio Deus, contemplá-lo em todas as coisas e todas as coisas a partir de seu amor. Nesta reflexão desejamos tratar sobre o modo de liderar formado através dos processos pedagógicos inacianos.
Princípio e fundamento
A Espiritualidade Inaciana tem sua origem na experiência suscitada pelo Espírito no coração de Iñigo, o Peregrino. Dado seu caminho de conversão, Inácio encontra em Deus Pai Criador a chave para interpretar a realidade. Assume Jesus Cristo como centro e modelo da vida. Ele o faz por meio do discernimento espiritual para encontrar o real sentido da vida o qual não estava nas glórias das batalhas e nem mesmo nas honras da nobreza. Afirmava, “o ser humano é criado para louvar, reverenciar e servir a Deus nosso Senhor e, assim, salvar-se” (Exercícios Espirituais de Santo Inácio 23, 2).
O sentido da vida Inácio chama de “Princípio e Fundamento”. Ao tratarmos de liderança à luz da espiritualidade inaciana, estamos falando de um serviço que ajuda os e as jovens a encontrar o sentido de suas vidas. “Hoje podemos traduzir para o sentido que desejamos dar à nossa vida respondendo aos desafios do nosso tempo” (FERREIRA, Márcia Rocha. Liderança: uma surpresa, uma caminhada… p. 94).
Nesse contexto, Jesus de Nazaré, seu Evangelho e sua missão de anunciar o Reino de Deus é o centro. A liderança assume a missão do Cristo. Colabora na criação de comunhão em realidades de fragmentação, ódio, tortura e desprezo à vida (cf. Lc 4, 18-19). Liderar processos e comunidades consiste em responder ao chamado para humanizar as realidades promovendo a comunhão, a integração e a construção do projeto de vida no encontro com Deus (COTA, Teresinha. Liderança inaciana e sinodalidade. p. 48-49).
Liderar é um serviço expresso no acompanhar e ajudar a outros em seu processo de integração, comunhão e construção do projeto de vida. Quem lidera é capaz de o fazer porque possui um projeto de vida. Um líder que não encontrou sua identidade, não encontrou a Jesus Cristo e não possui um projeto de vida, também não saberá acompanhar a outros na construção de seu projeto de vida. Como disse Jesus, “Um cego não pode guiar outro cego” (cf. 6, 39). Quem não construiu sua casa sobre a rocha, também não será capaz de ajudar a outros a construir.
Promover a fé e a justiça
Santo Alberto Hurtado afirma que a missão consiste em “ser um fogo que acende outros fogos”. O modo de proceder inaciano na formação de lideranças é baseado na experiência dos Exercícios Espirituais. Os Exercícios Espirituais tem por finalidade ser um meio para que o exercitante seja capaz de ao final assumir um projeto de vida: a bandeira de Cristo.
O âmago do seguimento do Cristo amigo é amar a Deus amando o que Ele ama e do modo que Ele ama (cf. 1Jo 4,20). Portanto, implica construir uma sociedade a partir dos fragilizados e descartados (cf. Jo 13). Um laço social fundado no amor como serviço irmanado aos mais fragéis e despossuídos. Liderar consiste em ser um místico social. “Uma mistagogia social estimula a vocação do místico social como construtor de uma civilização cuja lei é o amor e tecelão de redes de caridade”(PARANHOS, Washington. Liderança inaciana: o que é? como se faz?. p. 8).
O serviço à fé e a promoção da justiça são opções fundamentais e integradoras da experiência de formação inaciana. Estar a serviço da fé consiste em acompanhar pessoas no encontro com Jesus em sua integralidade. Nesse movimento, a promoção da justiça constitui uma exigência absoluta, visto que faz parte da reconciliação dos homens exigida pela reconciliação com Deus (Congregação Geral 32, decreto 4, n.2).
Caracterizado como serviço, o ministério de liderar processos e comunidades consiste em colaborar na missão de Cristo de anunciar o Reino de Deus tornando-o presente na realidade por palavras e obras (Congregação Geral 34, decreto 1, n.3). Colaborar para construir estruturas sociais, econômicas e políticas justas. Bem como, trabalhar para a mudança de valores e atitudes socioculturais determinados pela injustiça socioambiental (MARGENAT, Josep Maria. Competentes, conscientes, compasivos y comprometidos: la educación de los jesuitas. p. 104).
Contemplativos na ação
A base do processo de desenvolvimento de liderança é o desejo e a atitude permanente de buscar e encontrar a Deus em todas as coisas. Esse desejo se materializa por meio do discernimento inaciano que leva a pessoa a colocar-se à serviço do Reino de Deus construindo um mundo de verdade, justiça e amor (Congregação Geral 35, decreto 6). “O líder inaciano é uma espécie de mistagogo social, facilitando a descoberta da vontade de Deus” e “colaborando com Ele na reconciliação de um mundo dividido” (PARANHOS, Washington. Liderança inaciana: o que é? como se faz?. p. 12).
Os Exercícios Espirituais propõem um caminho de construção e responsabilização por um projeto de vida. Para isso, Inácio oferece meios para alcançar um fim. Ao final, o exercitante tem em suas mãos uma mudança existencial percebida de maneira qualitativa. Passa a olhar tudo a partir do amor profundo e apaixonado de Deus: um novo olhar, uma nova realidade e uma nova compreensão das pessoas. “Encontrar a Deus em todas as coisas implica também encontrá-lo nas pessoas. Não só contemplativo na ação, mas também na relação” (MIRANDA, Mario de França. Caminhar com Inácio de Loyola. p. 41).
O início do caminho é uma tomada de consciência do sentido da vida. Ao final, está a contemplação para alcançar amor: Ad amorem. Uma contemplação para alcançar e ser alcançado pelo amor. O Amor ativo e primeiro de Deus desperta a gratidão e transforma-se em luz e calor a iluminar e sustentar a vida humana. “O ‘Ad amorem’, portanto, é força expansiva que lança o exercitante em direção ao mundo, à humanidade, tornando-o mais universal e capacitando-a a descobrir, na realidade e na história, os ‘sinais dos tempos’ e a entrar em comunhão com tudo, porque Deus se deixa ‘transparecer’ em tudo” (PALAORO, Aldroaldo. Ad Amorem: gratidão que desemboca no diálogo amoroso. p. 27).
A formação se dá na ordenação dos afetos em busca de Deus para colocar-se a serviço para e com os demais (Exercícios Espirituais de Santo Inácio 1; 152; 155). Nesse caminho, a prática do discernimento é de suma importância, pois ajuda a pessoa a livremente comprometer-se com o mundo mediante uma análise cuidadosa de si e do contexto respeitando tempos, pessoas e lugares.
O líder jovem aprenderá a ter na reflexão o espaço de síntese ideal em vista do agir aberto à avaliação permanente segundo os critérios de Cristo (Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola 143-147; Congregação Geral 35, decreto 6, n.9). Nesse processo de acender o fogo interior, Os e as líderes jovens aprendem a decidirem por si mesmos o modo de colaborarem na missão movidos pelo desejo de imitar o modo de proceder de Cristo (Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola 167). Por isso, a espiritualidade inaciana se configura como formadora apostólica. “‘A real’ em que devemos cair é o mundo em que vivemos, como lugar da missão” (MORO, Ulpiano Vázquez. A orientação espiritual: mistagogia e teografia. p. 28).
REFERÊNCIA
COMPANHIA DE JESUS. Congregação Geral 32.
COMPANHIA DE JESUS. Congregação Geral 34.
COMPANHIA DE JESUS. Congregação Geral 35.
COTA, Teresinha. Liderança inaciana e sinodalidade. In: Revista de Espiritualidade Inaciana. a. 33 n. 133. Set. 2023. p. 41-49.
FERREIRA, Márcia Rocha. Liderança: uma surpresa, uma caminhada… In: Revista de Espiritualidade Inaciana. a. 33 n. 133. Set. 2023. p. 93-95.
FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. Trad. Márcio Alves da Fonseca; Salma Tannus Muchail. 3.ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
MARGENAT, Josep Maria. Competentes, conscientes, compasivos y comprometidos: la educación de los jesuitas. Bogotá: PPC, 2011.
MIRANDA, Mário de França. Caminhar com Inácio de Loyola. São Paulo: Loyola, 2022.
MORO, Ulpiano Vázquez. A orientação espiritual: mistagogia e teografia. São Paulo: Loyola, 2001.
PALAORO, Aldroaldo. Ad Amorem: gratidão que desemboca no diálogo amoroso. In: Revista de Espiritualidade Inaciana. a. 30 n.123. mar. 2021. p. 27-28.
PARANHOS, Washington. Liderança inaciana: o que é? como se faz?. In: Revista de Espiritualidade Inaciana. a. 33 n. 133. Set. 2023. p. 5-20.
Pierre Clastres: A sociedade contra o Estado – pesquisas de antropologia política Título original: La Société contre l’Etat – recherches d’anthropologie politique Tradução:Théo Santiago São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
SANTO INÁCIO DE LOYOLA. Exercícios Espirituais de Santo Inácio. 12.ed. São Paulo: Loyola, 1985.