Escrito por Shirley Almeida

Muito se fala sobre coragem e, no senso do imaginário comum, logo que escutamos essa palavra, nos vêm à mente homens fortes, bravos, que parecem não temer nada, aquele estereótipo construído dos filmes hollywoodianos. Pense bem… foi isso que veio à sua mente? Ou você conseguiu imaginar, por exemplo, uma senhorinha franzina, no meio da seca nordestina, contando sua história de vida com alegria e oferecendo um cafezinho a você, um mero desconhecido? Ou conseguiu imaginar qualquer história de “mais um Silva” das periferias do mundo, que apesar das dificuldades, segue acreditando? Responder essas perguntas é necessário para confrontar até que ponto nossas mentes foram colonizadas a uma idealização capaz de nos tirar da realidade e assim nos enganar sobre vivê-la e transformá-la num lugar melhor. Ou, talvez, nos alienar sobre aquilo que somos verdadeiramente chamados e chamadas. Isso é importante também para nos situar sobre que tipo de coragem temos a falar. Falamos da coragem no seu sentido primitivo, não querendo dizer arcaico, mas genuíno. É a coragem que significa agir com o coração. É o lugar onde habita a plenitude, a certeza inabalável, o suspiro mais profundo, o encontro verdadeiro com a nossa verdade, ainda que seja, muitas vezes, o lugar mais difícil de ser habitado. Difícil, porque somos enganados diante das diversas tentações desse sistema opressor que nos quer crentes em um consumo que nos tira a sobriedade de ficar diante do essencial. Fundamental destacar que aqui não falamos de coisas, mas de escolhas, pois elas envolvem as nossas ações e nossas ações refletem a sociedade que somos chamados e chamadas a construir cotidianamente.

É essa a coragem que Inácio e seus companheiros experimentaram ao decidir anunciar a Palavra. E o fruto virtuoso de toda essa coragem deixou como herança a nós (a Igreja) a maravilha que são os Exercícios Espirituais e o testemunho de vida de cada um. A coragem verdadeira é a semeadura em terra boa, sempre gera frutos e suas sementes permanecem brotando de geração em geração.

Portanto, na semeadura da vida, o processo se desenrola em ter tempo para parar, se confrontar, ordenar os afetos e tomar consciência dos passos fundamentais para silenciar os barulhos, acalmar a mente e ouvir o coração.

Assim agiu essa comunidade inaciana em Vicenza, passados os quarenta dias, põe-se a caminho para colocar em prática os frutos recolhidos, anunciando em palavras e ações o que tinham rezado.

Contempla-se isso, por exemplo, duma carta de Inácio a Contarini: “Experimentamos mais e mais cada dia a verdade daquelas palavras: ‘Nada tendo e tudo possuindo’ (2 Cor 6, 10), todas as coisas, digo, que o Senhor prometeu dar por acréscimo a quantos buscam primeiro o reino de Deus e a sua justiça. Poderá algo faltar…àqueles, digo, cuja bênção é do orvalho do céu e da abundância da terra? Refiro-me àqueles que não estão divididos, àqueles que têm seus dois olhos fitos nos bens celestiais…” (Autobiografia 95).

Não há aqui o desejo de romantizar uma vida árdua, mas, ao contrário, é refletir sobre a tomada de consciência de que a confiança no Senhor nos faz ir mais longe, rompendo as barreiras que nos são impostas e indo à luta para construir a vida que queremos fazer viver, em nós e nos outros. Já dizia João Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas:

“Todo caminho da gente é resvaloso. Mas também, cair não prejudica demais. A gente levanta, a gente sobe, a gente volta!… O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza!”

Afinal, somos filhos e filhas do Ressuscitado.

E é nessa confiança e nessa inspiração divina que Inácio e seus companheiros superaram as dificuldades, avançaram sobre o medo, agiram com o coração e começaram a pregar, a mover muitas pessoas à devoção e “passaram a ter com mais abundância as coisas necessárias a vida”¹.

Em tempos tão duros, ainda que doentes dessa sociedade enganosa, façamos com os irmãos e irmãs que perderam a esperança assim como Inácio. Ele, mesmo doente, vai com Fabro visitar Simão Rodrigues que estava desenganado pelos médicos, mas que, com um abraço e boas palavras, reanimou-se. Diante da “sociedade do cansaço”, reanimemos uns aos outros e às outras dos desenganos da vida, fiquemos com o essencial e avancemos rumo à vida em abundância.

E, por fim, em outra reflexão sobre a coragem, nos diz o teólogo Rubem Alves:

“As asas da alma se chamam coragem. Coragem não é a ausência de medo. É lançar-se, a despeito do medo”.

Por quais céus somos chamados e chamadas a alçar voo?

Leitura Bíblica: 2 Cor 6, 3 – 10

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Veja também a última reflexão.


¹ Autobiografia de Santo Inácio de Loyola 95.

 

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