A vocação não é exclusiva para os consagrados. Todos são chamados e convidados a abraçar essa vida plena e feliz com o Senhor, independentemente de como ela venha a se concretizar
Pe. Pedro Rocha Mendes, sj (publicado no site pontosj.pt)
O que é ter vocação?
A questão da vocação não é nada simples. Alguns preferem evitá-la, outros enfrentam com receio, e há quem escolha nem sequer saber. Não é de surpreender! No cotidiano, estamos acostumados a pensar que apenas alguns “têm vocação”, geralmente associada a um chamado inevitável à vida religiosa. E, muitas vezes, essa vida religiosa é apresentada de forma negativa: não se casar (a castidade), não desfrutar de bens (a pobreza), não fazer o que se quer (a obediência). Não é de surpreender que muitos recuem! No entanto, não se fazer essa pergunta é um grande erro, pois dela depende a nossa felicidade mais autêntica.
A palavra “vocação” vem do latim vocare, que significa “chamar”. Todo cristão é “chamado” por Deus a uma vida plena e feliz. Não apenas alguns escolhidos, mas todos! Alguns como consagrados, é verdade. Mas muitos outros como solteiros ou casados, como pais e avós, como profissionais dedicados ao trabalho, como membros de uma família, de um grupo específico ou de uma comunidade social e eclesial. Todos são chamados, pois todos são convidados a abraçar essa vida plena e feliz com o Senhor, independentemente da forma que ela tome.
Como posso descobrir minha vocação?
Perceber a que somos chamados exige uma busca, que pode se transformar em uma verdadeira exploração! Para o ser humano, a “vida plena” coincide, paradoxalmente, com a “vida plena” dos que estão ao seu redor. O segredo da felicidade, dizia a fada em um famoso conto infantil, “é fazer felizes as pessoas ao seu redor!” No fundo, essa é uma experiência comum, de que “quanto mais você se doa, mais você se enriquece” (como dizia nossa querida Santa Teresa de Calcutá), confirmando o que Jesus já dizia há dois mil anos: “Que o maior entre vocês seja aquele que serve. Felizes serão se colocarem isso em prática!”
Todos estamos tentando de muitas maneiras, mas a “fórmula da felicidade” parece ser bastante simples! Por isso, é importante começar perguntando com sinceridade: “Senhor, onde queres que eu Te sirva?”, ou seja, “Onde queres, Senhor, que eu coloque em prática minha capacidade de amar, para dar mais frutos e transformar mais o mundo?” Essa questão exige um caminho — um discernimento — que, por vezes, é longo, já que poucas vezes a resposta é imediata.
Por onde posso começar?
O discernimento da vocação passa, em primeiro lugar, por um processo de “escuta” do que Deus vai dizendo e propondo a cada um. Não existem receitas pré-definidas ou fórmulas infalíveis para essa resposta. Não há uma “lista de requisitos” a cumprir, como se Deus só contasse com os superdotados. A vocação também não é um “sacrifício”, como se Deus se alegrasse apenas com o que é mais difícil. E certamente não pode ser uma fuga ou uma alternativa para qualquer tipo de frustração.
Discernir a vocação sempre envolve escolher entre duas (ou mais) possibilidades boas em si mesmas. Ser padre ou consagrado não é melhor do que ser casado ou solteiro. Assim como ser médico não é melhor do que ser engenheiro ou artista. A escolha de uma dessas possibilidades não implica que a pessoa seria infeliz na outra. A vocação é um “encontro de duas liberdades”: o convite de Deus para viver a vida como missão em uma forma concreta que dará mais “frutos para o Reino”, e o reconhecimento e aceitação por parte da pessoa, que se encontra e realiza nesse projeto concreto de “bem maior”.
O que é essencial neste processo?
Se o processo de discernimento é “escuta”, torna-se essencial confiar n’Aquele que ouvimos: Deus e Sua vontade. Falar da “vontade de Deus” sempre traz o risco de vê-la como predestinação ou imposição, que se aceita com resignação ou por medo. Isso seria imaginar Deus como um “tirano”, imagem muito distante do “Pai próximo” a que Jesus sempre se referia. Um Deus-Pai que nos deseja uma “vida em abundância”, com ânimo e alegria interior.
Na verdade, fé, em seu sentido mais original, significa confiança filial na promessa de Deus. Não se trata de uma promessa de vida fácil ou da presença divina para resolver nossos problemas! É, ao contrário, a certeza de que o Senhor estará sempre conosco e que Sua presença nos permitirá ver e interpretar tudo com Sua luz e esperança. “Deus é mais íntimo do que o nosso próprio íntimo”, dizia Santo Agostinho, e foi essa confiança que permitiu a São Paulo escrever que “nada nos separará do Amor de Deus”.
Posso ouvir a voz de Deus?
O processo de discernimento passa exatamente por aprender a reconhecer e interpretar essa “voz de Deus” em nós. Isso exige crescer no conhecimento dos “sinais de Deus” dentro e fora de si. Aos sinais interiores chamamos “consolação” e “desolação”: a consolação geralmente se traduz em alegria e paz interior (mesmo com consequências difíceis) e indica o caminho a seguir, deixando a pessoa em paz. A desolação, ao contrário, costuma aparecer como inquietação e falta de paz consigo mesmo, sinal de que aquela opção pode não ser a melhor.
Foi pela sua própria experiência que Santo Inácio de Loyola chegou a reconhecer esses sinais de Deus: enquanto convalescia em seu quarto e pensava em duas possibilidades de futuro (dedicar-se a Deus ou à vida de nobreza), Inácio surpreendentemente se sentia em paz e alegre com a primeira opção, e vazio e inquieto com a segunda. A partir dessa experiência, ele passou a “ver todas as coisas de forma nova” e escreveu regras para o “discernimento dos espíritos” (interiores), parte dos Exercícios Espirituais, ainda profundamente atuais.
O que pode me ajudar neste caminho?
Ajuda muito lembrar que o processo de discernimento não se aplica só às grandes decisões de vida, mas faz sentido mesmo nas pequenas escolhas e momentos do cotidiano. É essencial cultivar uma “atitude constante de discernimento”, uma “sabedoria” na qual todo cristão deveria crescer, pois é ela que permite estar mais em comunhão com Deus e atento aos Seus sinais através da realidade. Contudo, é especialmente em momentos de decisão que essa “sabedoria” precisa ser exercitada com mais atenção.
Para tudo isso, o “exame de consciência” diário, a oração frequente, a prática regular dos sacramentos e a experiência dos Exercícios Espirituais ajudam muito. Outra grande ferramenta é o “acompanhamento espiritual”, que possibilita confrontar, junto a alguém mais experiente nas coisas de Deus, os movimentos e inquietações interiores. O acompanhante não toma decisões “em vez de” alguém, nem é apenas um “amigo próximo” com bons conselhos, mas alguém que ajuda a libertar dos medos e preconceitos infundados e a reconhecer e aprofundar a “presença de Deus” na vida da pessoa. Já pensou em pedir a alguém para te ajudar no seu caminho?