“Da nossa vida, em meio da jornada, achei-me numa selva tenebrosa, tendo perdido a verdadeira estrada” (Dante Alighieri, em “Divina Comédia”)
Escrito por Evenice Neta (Netinha)
A história de Santo Inácio nos revela o que poderíamos chamar de “jornadas dentro da jornada”. Desde a bala de canhão, foram muitos caminhos percorridos por Inácio, que, passo a passo, ia alcançando a graça da conversão. Hoje vamos mirar um recorte dentre as jornadas de Santo Inácio, olhar suas convalescenças e refletir como Deus o foi conduzindo para um caminho de liberdade.
Além da já conhecida bala de canhão, que marca o início da conversão de Santo Inácio, houve outras ocasiões em que o peregrino se viu “à beira da morte”. Na sua autobiografia (n. 32-33) são narradas três situações-limite da sua vida: A primeira, uma enfermidade que lhe acometeu em Manresa; a segunda, uma viagem “com mar tempestuoso” quando ia de Valência à Itália; e a terceira, novamente, uma doença que, por ele e por muitos, “era tida como a última”. Certamente há outros momentos de enfermidades e perigos vividos por Inácio, esses três contudo, são escolhidos por ele para evidenciar a jornada interior que lhe ocorreu ao vivenciar tais eventos.
Quando Inácio nos dar a conhecer os três episódios, nos convida a examinarmos a sua mudança de percepção diante da vida, da convalescença e da morte. Santo Inácio saiu de um lugar de fervoroso autojulgamento (“digam que sou pecador!”), para verdadeiro consolo diante da morte. No meio do caminho, ainda, sentiu dor e confusão por sentir ter vivido pouco diante do muito o que ainda queria fazer em vida.
O que significa, para mim, esse percurso interior de Inácio diante da doença e da morte? A mim, como chega esse itinerário que passa pelo autojulgamento, caminha pela autossuficiência e centralidade e, por fim, abraça a liberdade?
Nós reagimos a determinados episódios de nossas trajetórias de vida desde o que sentimos e acreditamos. Somos frutos de um contexto particular, bem como das escolhas e reflexões que carregamos em nossa bagagem. Com a graça de Deus, isso é mutável.
Fazer um caminho de conformar a nossa vida à Jesus é desejar sermos mais livres para acolher a nossa realidade e desejar, em todos os contextos, escolher “o que mais nos conduz para o fim para que somos criados” (EE 23).
Podemos afirmar, portanto, que conformar a nossa vida a de Jesus, em um processo de busca por liberdade interior, é livrar-nos dos excessos e buscarmos ser presença harmônica, com o coração, a mente, as intenções e a forma de proceder equilibradas, afinadas com a pessoa de Jesus Cristo.
Quando olho para a minha vida, onde me concentro? Nos meus erros e pecados? O autojulgamento, isento de misericórdia, me faz caminhar para o precipício, me distancia de Deus, me faz me sentir pessoa indigna de seu amor. Jesus não cansou de testemunhar o amor do Pai por seus filhos e filhas. Ficar distante desse amor, não é de Deus.
Por outro lado, quando olho para minha caminhada, me sinto uma pessoa interpelada a fazer mais? Sinto-me como em uma corrida cujo tempo para chegada está se esgotando? A preocupação com o “fazer e fazer”, antes do ser e estar, gera o risco da autocentralidade e da autossuficiência. Isso nos faz distantes do que somos agora, nos causa ansiedade e nos rouba o presente.
Ter consciência de si e daquilo que se pode melhorar e desejar profundamente se converter é caminho que nos leva à vida, desde que acolhamos a misericórdia e o amor de Deus, que nos são dados, gratuitamente, desde sempre e para sempre. Inácio, em sua jornada de conversão, reconheceu que o Pai não o julgava em sua humanidade. Apesar de reconhecer-se pecador, ele aprendeu que, infinitamente maior do que o pecado, é o amor de Deus, que ia, tal como a uma criancinha, ensinando-o a libertar-se do seu autojulgamento e dos seus escrúpulos.
Ter uma relação consigo de amor e liberdade nos levará a uma jornada de alteridade. Nessa caminhada, não podemos temer quem somos. Essa é postura imprescindível para agirmos com amor e compaixão também para com nossos irmãos e irmãs.
Texto bíblico: Mateus 8, 5-17
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