No artigo, o jesuíta aborda como a Internet vem impactando nas relações humanas, a ponto de mudar até mesmo as formas como nos encontramos

Pe. Bruno Franguelli, SJ
Publicado na Revista La Civilità Cattolica

“O mundo digital deve ser habitado pelos cristãos”, escreveu o Papa Francisco num prefácio de um livro lançado recentemente sobre a Igreja no mundo digital¹. Assistimos, principalmente nas últimas duas décadas, uma real mudança de paradigma, que modificou o cotidiano social. A cultura digital trouxe muitas surpresas e a sua importância no dia a dia das pessoas é indiscutível. Além disso, ela não parece ser uma moda e sua influência apresenta se irreversível. Em relação aos relacionamentos humanos, estes sofreram um grande impacto. As modalidades de encontros também foram alteradas. O serviço de internet, que inicialmente estava disponível a alguns poucos privilegiados, tem se tornado, pouco a pouco, acessível a uma parcela considerável do globo terrestre. A conexão e, de modo especial, os serviços de geolocalização continuam a desafiar a antiga concepção de tempo e espaço.

Além disso, o constante influxo das redes em nossas vidas nos convida a uma maior compreensão do fenômeno digital e a uma crescente consciência da superação dicotômica entre o real e o virtual. O “mundo”, hoje, encontra-se nas mãos de todo aquele que carrega consigo um aparelho chamado smartphone conectado a um serviço de internet.

Neste sentido, o ambiente digital passou a ser explorado por várias áreas do saber: nas ciências sociais e na comunicação, mas também na psicologia, filosofia, economia, marketing, antropologia e até na teologia. Cresceram os estudos com as mais diversas óticas sobre o campo digital, que não se trata simplesmente de um espaço alternativo que disponibiliza ferramentas proporcionadoras de oportunidades, mas de uma cultura que se impõe cada vez mais e tem mudado o modo de ser e do agir humano e social. Dentre estas ferramentas do mundo digital que têm modificado os relacionamentos humanos, nos propomos a apresentar o advento dos aplicativos de encontros: os chamados dating apps.

A história das buscas afetivas na mídia e o nascimento dos dating apps 

“O ser humano é um vivente desta terra, e tudo o que faz e busca está carregado de paixões”², afirma o Papa Francisco. Neste sentido, compreendemos o homem como um ser “repleto de paixões” que busca os mais diversos modos de encontrar-se com outros, e que ao mesmo tempo, mais que satisfaz seus próprios instintos, este tem sede de encontros verdadeiros e profundos. O “modo” como o ser humano busca estes encontros é compreendido assim como “meio/mídia” que ao longo da história realizou-se das mais diferentes formas. Ao interno da cultura digital, se destacam de modo particular a presença dos mais variados dating apps, que a cada dia aparecem no mercado digital e fazem saltar os olhos daqueles que buscam um modo mais eficiente e rápido para conhecer outras pessoas e relacionar-se com elas. Uma revisão sistemática realizada em 2020 sobre estudos relacionados aos dating apps entre os anos de 2016-2020 faz a seguinte declaração:“os dating apps vieram para ficar e constituem um fenômeno social imparável, como evidenciado pelo uso e literatura publicada sobre o assunto ao longo dos últimos cinco anos. Estes aplicativos se tornaram uma nova maneira de conhecer e interagir com potenciais parceiros, mudando as regras do jogo e as relações românticas e sexuais para milhões de pessoas em todo o mundo” ³.

A história das buscas afetivas por meio de uma mídia remonta o século XVIII com os anúncios casamenteiros e tornou-se um negócio lucrativo para os jornais. Nos anos de 80 e 90, antes da aparição dos websites de relacionamentos nos Estados Unidos, os solteiros frequentemente utilizavam as páginas dos jornais denominadas “classificados” para conhecer novas pessoas. Os anúncios eram curtos e começavam com um título atrevido de mulheres que buscavam por homens como “Grande e bonita” e “Graça sob fogo”, ou mesmo de homens que buscavam mulheres com o nome de “desesperado” e “caça à raposa”, por exemplo. O valor do pagamento da publicação era feito pelo número de linhas desejado. Após a publicação dos ditos anúncios na página, a pessoa que se interessava fazia uma chamada telefônica e deixava uma mensagem na caixa postal do anunciante e pagava em torno de 1,75 dólares por minuto. O tempo médio das ligações duravam em torno de 3 minutos. O anunciante então ouvia os recados e, se lhe interessava, podia entrar em contato com os pretendentes. Não havia fotos e o anúncio constava pouquíssima informação. 

Por volta dos anos 90, a Internet começou a popularizar-se. Surgiram então websites próprios para a busca por relacionamentos. Um dos primeiros sites específicos de relacionamentos é o Match.com, criado em 1995, que desde a sua fundação até 2004 recebeu pelo menos 42 milhões de usuários de todo o mundo. Pelo incrível sucesso que obteve, neste mesmo ano o website entrou para o livro dos recordes da Guinnens World como maior site de encontros on-line até então existente. Neste sentido, podemos afirmar que os dating apps nasceram dentro de uma cultura de busca de parceiros(as) on-line já existente desde o início da Internet. Tais aplicativos são plataformas, utilizadas principalmente em smartphones e tablets, que sintetizam as funcionalidades das antigas salas de bate-papo e outros sites de relacionamento. Os dating apps são programas disponíveis em lojas on-line em versões gratuitas ou pagas, que contém mais serviços disponíveis. Para começar, é preciso instalá-lo em seu dispositivo, criar um perfil com foto ou anônimo e assim é possível visualizar os outros usuários de acordo com a distância na qual se encontram. Graças ao GPS, os dating apps podem mostrar quão próximo alguém está de parceiros em potencial. Por isso, tanto a facilidade do seu funcionamento como os serviços constantemente atualizados os tornaram muito populares, principalmente entre os mais jovens.

A internet e a modificação da vida afetiva de seus usuários 

“A vida virtual está jogando rápido e solto com as realidades físicas do tempo e do espaço e está criando um estresse que é antropologicamente (e portanto teologicamente) insustentável. Em nossas vidas on-line, certamente vemos novas expressões de nobreza e virtude; mas também vemos novas expressões de rebaixamento humano e materialismo grosseiro. Temos visto jovens – especialmente adolescentes do sexo masculino – cada vez mais alienados pelas versões fraudulentas do sexo e da intimidade vendidas pela indústria pornográfica.” ⁴ Neste sentido, os sociólogos afirmam que o advento da internet tem, de fato, modificado a vida tanto afetiva como sexual dos usuários. Vale recordar o que afirma o antropólogo inglês Daniel Miller, experto em Antropologia Digital:“ a internet é mais bem-compreendida não como tecnologia, mas como uma plataforma que habilita pessoas a criar tecnologias, as quais, por sua vez, são desenhadas para funções particulares. Assim, o que as pessoas tecem a partir das fibras da internet são armadilhas que usam para capturar tipos particulares de surfistas passantes. Essas armadilhas exigem um desenho que atraia interesse, atenção e consideração, e, por meio disso, que seduza suas vítimas específicas” ⁵. Deste modo, o que pode ser visto como mero instrumento que potencializa tantas possibilidades pode também ter um influxo no modo como seus usuários compreendem a si mesmos, os outros e o mundo ao seu redor. 

Dentre as várias transformações que podemos elencar nas quais constatamos que a internet, e de modo especial os dating apps, têm possibilitado uma mudança considerável no modo de compreender e viver os afetos e a sexualidade, enumeramos cinco principais⁶. A primeira delas está relacionada com a criação de um sentimento de agência para pessoas que, por vários motivos, historicamente, foram impedidas ou controladas no exercício de sua sexualidade. Aqui pode-se citar tanto as mulheres como pessoas com orientação homossexual. Em relação a busca de parceiros heterossexuais a internet foi apenas mais um meio para tal empreendimento, que jamais lhes foi negado. A segunda transformação tem a ver com a individualização da busca por parceiros que é possibilitada pelas plataformas on-line. Algo que não acontecia antes. Foi por meio eletrônico que passou a ser possível a busca imediata por parceiros segundo interesses pessoais como preferências pessoais e características físicas. A terceira transformação tem a ver com a mudança na forma e no próprio roteiro do flerte, que passou a ser mais direto. Já a quarta transformação é mais perceptível para as primeiras gerações que se conheceram no mundo on-line. Trata-se da aceleração das relações que a facilidade da internet provoca. Do primeiro contato ao encontro, passando também da intimidade ao rompimento. Para muitos, os chamados “laços fracos” das conexões on-line são duplamente desejáveis exatamente porque garantem segurança de poderem ser rompidos facilmente e sem consequências negativas para sua vida cotidiana, assim como podem ser os mais adequados para desejos segmentados como os que envolvem a formação de redes relacionais. Neste sentido, o renomado sociólogo, Zygmunt Bauman, com o seu conhecido conceito de “Amor líquido” exprime a mesma realidade da fragilidade dos relacionamentos na contemporaneidade quando afirma:“quanto menor a hipoteca, menos inseguro você vai se sentir quando for exposto às flutuações do mercado imobiliário futuro; quanto menos investir no relacionamento, menos inseguro vai se sentir quando for exposto às flutuações de suas emoções futuras.”⁷

A quinta e última transformação está relacionada a ampliação de possibilidades de escolha provocada pela internet de parceiros em potencial. As redes possibilitaram o acesso a um número maior de parceiros sexuais e amorosos. Fez crescer o horizonte amoroso dos usuários. É neste sentido, que os usuários, diante de tais facilidades proporcionadas pela internet, principalmente por meio dos dating apps, tem ainda mais oportunidade escolher. Num espaço breve de tempo, o usuário/consumidor/jogador é capaz de selecionar, filtrar ou descartar as infinitas opções de perfis de pessoas que se apresentam, com apenas um rápido swipe, ou seja, um simples deslizar dos dedos sobre a foto e os perfis dos outros usuários.

Recuperar os gestos afetivos: uma contribuição à luz da Encíclica Fratelli Tutti

Hoje, contemplando as facilidades que nos trouxe a cultura digital, principalmente no que diz respeito aos relacionamentos humanos, como afirma o Papa Francisco, podemos reconhecer que “alimentamo-nos com sonhos de esplendor e grandeza, e acabamos por cometer distração, fechamento e solidão; empanturramo-nos de conexões, e perdemos o gosto da fraternidade. Buscamos o resultado rápido e seguro, e encontramo-nos oprimidos pela impaciência e a ansiedade. Prisioneiros da virtualidade, perdemos o gosto e o sabor da realidade”.⁸ A Encíclica Fratelli Tutti, embora não tenha por objeto principal o tema da cultura digital, esta dedica alguns pontos de reflexão que podem contribuir para oferecer uma contribuição no que diz respeito à realidade do jogos afetivos e a lógica de mercado presente no uso dos dating apps. 

Um dos paradigmas apresentados pela Fratelli Tutti diz respeito às ilusões existentes dentro do universo das redes sociais e plataformas digitais, e que esta dificilmente oferece espaço para a intimidade e para a socialização. De modo particular, o documento fala da perda dos ritos de encontros comunicativos como o silêncio e a escuta. A compreensão desta falta pode ser explicitada, de modo particular com o funcionamento das relações digitais que diz respeito aos cliques e mensagens rápidas e ansiosas. E tal realidade pode colocar em perigo a estrutura básica de uma comunicação humana sábia. Segundo Francisco, deste modo, cria-se um novo estilo de vida, no qual cada um constrói o que deseja ter à sua frente e, assim, exclui tudo aquilo que não se pode controlar ou conhecer superficial e instantaneamente.

A compreensão oferecida pela Fratelli Tutti pode evocar pontos de reflexão que podemos relacionar com o uso de dating apps, que segundo os sociólogos, podem provocar um abandono das concepções tradicionais de amizade, amor, família, partido, e um abandono também das concepções dialéticas, transcendentes de intersubjetividade, comunidade e revolução.“As relações virtuais podem certamente acompanhar, mas não substituir àquelas reais; quando isso acontece, corremos o risco de nos privar […] da elaboração de algumas características fundamentais do viver juntos, como a ternura e a empatia, levando assim aquelas situações de inafetividade, a incapacidade de ter claro os próprios sentimentos.”⁹ Deste modo, o que vale para as redes sociais em geral, pode ser muito bem aplicado aos jogos ao interno dos dating apps nos quais existe no seu funcionamento um alto grau de imediatismo e superficialidade, dos quais, dificilmente as relações se aprofundam se não quebram sua lógica de mercado e consumo. Neste sentido, a Fratelli Tutti fala da lógica da seleção e do descarte nas redes, nas quais existe uma evidente objetificação do outro e se verifica uma clara expressão da lógica do mercado afetivo, que é tão presente no uso dos dating apps: «Em consequência, implementa-se um mecanismo de «seleção», criando-se o hábito de separar imediatamente o que gosto daquilo que não gosto, as coisas atraentes das desagradáveis. A mesma lógica preside à escolha das pessoas com quem se decide partilhar o mundo. Assim, as pessoas ou situações que feriam a nossa sensibilidade ou nos causavam aversão, hoje são simplesmente eliminadas nas redes virtuais, construindo um círculo virtual que nos isola do mundo em que vivemos».¹⁰

Papa Francisco, nesta encíclica que tem por tema principal a amizade social, apresenta sua preocupação com o real encontro humano no qual deve ser superado o narcisismo, elemento chave impresso na lógica competitiva de mercado: “os meios de comunicação digitais podem expor ao risco de dependência, isolamento e perda progressiva de contato com a realidade concreta, dificultando o desenvolvimento de relações interpessoais autênticas.” ¹¹Francisco também reconhece que é possível, através das mídias sociais, que se fomente valores de solidariedade e a vivência de valores altruísticos, inclusive podem nos ajudar a sermos mais próximos uns dos outros. O Papa afirma ainda que, especialmente em nossos dias, as redes de comunicação humana atingiram progressos nunca vistos. E que a internet pode sim ser um meio para promover encontros e gestos de solidariedade. Porém, em seguida, adverte:“ no entanto, é necessário verificar, continuamente, que as formas atuais de comunicação nos orientem efetivamente para o encontro generoso, a busca sincera da verdade íntegra, o serviço, a aproximação dos últimos e o compromisso de construir o bem comum. Ao mesmo tempo, como indicaram os bispos da Austrália,“não podemos aceitar um mundo digital projetado para explorar as nossas fraquezas e tirar fora o pior das pessoas”. ¹²

É neste sentido que o Papa evoca a recuperação de gestos afetivos. Para Francisco, as relações que se dão na conexão digital carecem de elementos afetivos que estão intrinsecamente ligados ao desenvolvimento de relações saudáveis. Existe, deste modo, a necessidade de gestos físicos, utilizando a terminologia proposta por Eric Berne¹³, renomado psicólogo fundador da análise  transacional, de “estímulos” que o mundo digital não é capaz de oferecer em profundidade. Para Francisco, o elemento propriamente físico é indispensável para uma comunicação verdadeiramente humana: “Fazem falta gestos físicos, expressões do rosto, silêncios, linguagem corpórea e até o perfume, o tremor das mãos, o rubor, a transpiração, porque tudo isso fala e faz parte da comunicação humana. As relações digitais, que dispensam da fadiga de cultivar uma amizade, uma reciprocidade estável e até um consenso que amadurece com o tempo, têm aparência de sociabilidade, mas não constroem verdadeiramente um «nós»; na verdade, habitualmente dissimulam e ampliam o mesmo individualismo que se manifesta na xenofobia e no desprezo dos frágeis. A conexão digital não basta para lançar pontes, não é capaz de unir a humanidade.” ¹⁴

Deste modo, poderíamos destacar três aspectos fundamentais presentes na Fratelli Tutti em relação a comunicação humana na cultura digital: O primeiro diz respeito à necessidade da gestualidade corporal/afetiva: na comunicação humana os gestos são essenciais para dar-se a conhecer e também para conhecer o outro. Neste sentido, as relações digitais são precárias desta gestualidade. O segundo aspecto é o da reciprocidade: a comunicação é sempre relação com alguém, que exige consenso e tempo para amadurecer. Já as relações digitais se estabelecem em torno do imediatismo. Já o terceiro aspecto diz respeito ao risco das relações digitais e da falsa sociabilidade: As relações digitais não constroem um verdadeiro “nós”, dissimulam e, deste modo, contribui para que predomine o individualismo. 

“A época dos ritos tristes”: uma proposta de superação 

“Quantos amores tristes, jogados na sombra do engano, do acaso, da rejeição! O Ágape ama sem fazer cálculos.” ¹⁵Podemos nos perguntar: Os dating apps conseguirão digitalizar a ritualidade do amor? Podemos denominar nosso tempo como a época dos ritos tristes? Neste sentido, parece ser urgente uma “liturgia”, isto é, uma gestualidade que seja emissora de uma mensagem que supere a fluidez da nossa época. «Também o amor possui seus ritos, e vive-los sem levar em conta a gradualidade e o aprendizado é um risco. Tornar-nos-iam menos humanos»16 . Assim, a liturgia triste proposta pelos dating apps pode ser compreendida já no início de seu ritual, exatamente porque o ponto de partida nas relações nos aplicativos é a fotografia: “o slogan “o olho também quer sua parte” tem sido usado desde tempos imemoriais e não é uma invenção dos dating apps. Mas o mecanismo é blindado: se começa com o olho, e entre outras coisas, o olho encontra uma fotografia. […] Começa com a atração física por certos elementos que devem ser bem enfatizados nas fotos a fim de ter mais esperança. E não é o sorriso ou a simpatia. […] Os dating apps desnudam ainda que se esteja totalmente vestido: você só pode esperar atrair a atenção se você expuser seu corpo a um julgamento de caráter impulsivo.” ¹⁷

Com tudo isso, podemos, infelizmente, constatar que vivemos em uma época que predomina o estado de “analfabetismo amoroso e erótico” e nesta os dating apps representam uma promoção de um perene estado de adolescência que anula as expressões físicos/afetivas como e embaraço e a inibição, próprias da ritualidade do encontro amoroso, e permite trafegar pelo estado infantil do eros. Além disso, os dating apps podem funcionar como ladrões de imaginação que podem profanar a nossa capacidade de imaginar e sonhar com o outro: “achamos que vemos tudo – uma pessoa, isto é, uma pessoa – mas então a levamos tão rapidamente para as regiões inferiores como se fosse um par de sapatos”.¹⁸

Neste sentido, nos propomos a apresentar três paradigmas que, segundo a nossa análise, sintetizam a lógica do mecanismo dos dating apps e que, de certo modo, condicionam os jogos afetivos ao interno dos mesmos: O primeiro trata-se de um paradigma espacial: Existe um cancelamento das distâncias e subversão dos limites. Os serviços de geolocalização e a lógica de funcionamento dos dating apps evidenciam ainda mais esta realidade. Neste sentido, a proximidade física é essencial na seleção de parceiros. O segundo paradigma é o temporal: Ignora-se o tempo e gradualidade, necessários para a construção da intimidade. Os aplicativos apostam seu funcionamento na oferta de um serviço que faz todo o possível para que o usuário possa “perder tempo” e obtenha sucesso o mais rápido possível. Deste modo, encontros são condicionados pela imediatez e fluidez oferecidas pela lógica do funcionamento dos dating apps. Já o terceiro trata-se do paradigma teleológico: O telos apresentado pelos dating apps é a satisfação imediata das necessidades do usuário/consumidor. Neste sentido, as relações que se desenvolvem nos dating apps tendem a ser frágeis. Dificilmente existe continuidade em tais relações. A lógica mercantil do aplicativo não favorece promessas de fidelidade. Se entre dois usuários existe o desejo de construir a intimidade e um relacionamento duradouro, se faz necessário o abandono de tais aplicativos e abraçar o telos da felicidade.

Após observar tais paradigmas que, como dissemos, podem sintetizar a lógica promovida pelos dating apps, propomos como antídoto contra esta lógica três novos paradigmas. Para isso, recorremos ao clássico literário “O Pequeno Príncipe’ de Saint-Exupéry no qual o autor apresenta o rico diálogo entre o príncipe a raposa que, distante de ser considerado simplisticamente uma estória com componentes da fantasia e da literatura infantil, este pode oferecer pistas que contrastam com o ritual dos jogos afetivos oferecidos na lógica dos “encontros” que se dão através dos dating apps. O ritual desenhado pela fábula assim, é concebido como gestualidades que quebram a monotonia e produzem esperança. No rito afetivo, os encontros são preparados dentro de um espaço-tempo que não permite que a experiência afetiva se dissolva no deslocamento superficial da banalidade e do esquecimento. Recordemos o trecho em questão:

“O que devo fazer? – perguntou o pequeno príncipe. – Deve ser muito paciente – respondeu a raposa. – A primeira coisa é sentar um pouco mais longe de mim, isso, na relva. Eu olho para você de rabo de olho e você não diz nada. A linguagem é fonte de mal-entendidos. Porém, a cada dia que passa, você se aproxima um pouco mais… No dia seguinte, o príncipe voltou. “partir das três. À medida que a hora avançar, me sentirei mais feliz. Às quatro, já estarei agitado e preocupado; descobrirei o preço da felicidade! Mas se vier a qualquer hora, nunca saberei o momento de preparar o meu coração… Rituais são necessários. – O que é um ritual? – quis saber o pequeno príncipe.– É uma coisa muito esquecida também – disse a raposa. – É o que faz com que um dia seja diferente dos outros dias, uma hora das outras horas. Há um ritual, por exemplo, entre os meus caçadores. Às quintas-feiras, eles dançam com as moças da aldeia. Então a quinta-feira é um dia maravilhoso! Aproveito para passear até o vinhedo. Se os caçadores dançassem a qualquer hora, os dias seriam todos iguais e eu não teria feriados.”– Seria preferível vir à mesma hora – disse a raposa. – Se vier, por exemplo, às quatro da tarde, começarei a ficar feliz a partir das três. À medida que a hora avançar, me sentirei mais feliz. Às quatro, já estarei agitado e preocupado; “descobrirei o preço da felicidade! Mas se vier a qualquer hora, nunca saberei o momento de preparar o meu coração… Rituais são necessários.– O que é um ritual? – quis saber o pequeno príncipe.– É uma coisa muito esquecida também – disse a raposa. – É o que faz com que um dia seja diferente dos outros dias, uma hora das outras horas.” ¹⁹

A fábula evoca elementos que podem servir de antídoto contra o conceito de “profanação”, elaborado por Durkheim. Os ritos afetivos evocados na estória elaboram um paradigma de comunicação afetiva que estabelece aquilo que a Fratelli Tutti chama de gradualidade contra o imediatismo. O encontro entre o pequeno príncipe e a raposa estabelece a partir de um diálogo “silencioso” no qual a distância é sinal de respeito à sacralidade do outro. O elemento teleológico que rege a reclamação da raposa pelo comportamento idealizado do pequeno príncipe é a felicidade. Neste sentido, a ritualidade se dá através da graduação da aproximação tanto física como a partir de gestos corteses. Deste modo, a raposa reclama o ritual como condição de possibilidade para um autêntico conhecimento mútuo e uma duradoura relação que seguirá amadurecendo através do respeito aos ritmos ditados pela paciência e respeitando os limites do tempo e do espaço. 

Portanto, podemos também citar três paradigmas essenciais inspirados na reclamação do ritual realizada pela raposa ao pequeno príncipe na fábula que podem nos ajudar a superar o mecanismo proposto pelos dating apps e assim, alimentar relações verdadeiras e saudáveis, evitando qualquer sinal de profanação e promovendo a construção da intimidade: O primeiro trata-se do paradigma espacial. Ou seja, faz-se necessária a distância inicial como atitude de reverência e zelo a si mesmo e ao outro. Ao apresentar-se, o pequeno príncipe deseja romper as distâncias e se aproximar instintivamente da raposa. Mas tal atitude é imediatamente reprovada pela raposa. Ela reclama ritual. Distante de qualquer banalização no encontro, a raposa evoca a distância como condição de possibilidade para um verdadeiro e duradouro encontro. 

Um segundo paradigma é o aspecto temporal. Este diz respeito ao acatamento ao tempo e o cuidado pela aproximação gradual do outro. A imediatez do encontro, assim, é substituída pelo respeito que se realiza através da aproximação cuidadosa e gradual, respeitando os ritmos estabelecidos pelo tempo, pelo amadurecer do relacionamento. O encontro entre o pequeno príncipe e a raposa tem tempo limitado e é feito de pausas, distâncias e silêncios. É preciso ir embora, deixar o outro respirar, sentir a ausência do outro e criar espaço para a saudade. Já o terceiro paradigma é o teleológico: O telos que deseja ser alcançado pela raposa através do encontro com o pequeno príncipe é a felicidade: “Descobrirei o preço da felicidade”. E a esta se alcança através da fidelidade ao compromisso assumido entre os dois. Trata-se da fidelidade à relação estabelecida através da promessa de continuidade do encontro. A reclamação da raposa pela hora marcada do encontro evoca esta fidelidade. O encontro assim é marcado pelo ritual amoroso que leva em consideração a aproximação gradual, o respeito ao tempo e a construção da intimidade. Só assim o encontro não correrá o risco da banalização e fará diferença na vida dos dois. Utilizando o conceito de Durkheim²⁰ , o encontro evitará a profanação.

Deste modo, percebemos que a fábula de “O Pequeno Príncipe” é iluminadora e os três paradigmas que aqui apontamos podem funcionar como um antídoto contra a banalização ou profanação dos encontros, que a lógica de funcionamento dos dating apps oferece. Os paradigmas apresentados podem auxiliar na tomada de consciência do indivíduo que se aventura na complexa construção de relações menos frágeis e assim, distanciar-se da lógica mercantilista dos afetos, tão necessária para a superação da “época dos ritos tristes”. 

Existe amor nos dating apps?

Os dating apps obedecem, de modo especial, a uma lógica: a lógica do mercado. Lógica esta que estabelece regras como em um jogo que, como vimos compõem um mercado afetivo marcado pela competição e por “relacionamentos fracos”. Neste sentido, o conceito amor é quase um tabu nos dating apps. Embora carecemos de estudos mais aprofundados sobre isso, sustentamos que isso se dá pela própria lógica mercantil dos dating apps, que é delineado pela lógica do desejo, não do amor. Mas, de que espécie de amor estamos falando? 

Sustentamos nosso entendimento por amor dentro da antropologia cristã que se dá não no jogo infantil e mercantil dominada pela exclusividade erótica, mas na experiência que se torna “descoberta do outro, superando assim o caráter egoísta que antes claramente prevalecia. Agora o amor torna-se cuidado do outro e pelo outro. Já não se busca a si próprio, não busca a imersão no inebriamento da felicidade; procura, ao invés, o bem do amado: torna-se renúncia, está disposto ao sacrifício, antes procura-o”. ²¹ Portanto, a lógica do amor que sublinhamos tem caráter de cuidado pelo outro, não é egoísta e está disposto a renúncias e sacrifício pelo outro como doação total: “O amor é paciente, é bondoso, não é invejoso, não é presunçoso nem se incha de orgulho; não faz nada de vergonhoso, não é interesseiro, não se encoleriza, não leva em conta o mal sofrido, não se alegra com a injustiça, mas fica alegre com a verdade. Ele tudo desculpa, crê tudo, espera tudo. O amor jamais acabará.” (1 Cor 13, 4-8).

Além disso, o amor não é passageiro e nem pode ser concebido dentro de realidades de encontros efêmeros e limitados ao prazer biológico. Porém, ao fazer sua consideração sobre o amor erótico, Bento XVI não rejeita a sua importância, mas apresenta a sua necessária purificação, que para ser verdadeiro e duradouro necessita caminhar pela estrada das renúncias: “O amor promete infinito, eternidade — uma realidade maior e totalmente diferente do dia-a-dia da nossa existência. E o segundo é que o caminho para tal meta não consiste em deixar-se simplesmente subjugar pelo instinto. São necessárias purificações e amadurecimentos, que passam também pela estrada da renúncia. Isto não é rejeição do eros, não é o seu «envenenamento», mas a cura em ordem à sua verdadeira grandeza.” ²²

É verdade que na sociedade atual, globalizada e plural, estas possibilidades são evidentes também fora dos dating apps, mas a grande novidade destes é que, como em alguns restaurantes que na era digital já não contam com cardápios impressos, o menu dos aplicativos está ao alcance dos dedos. Neste sentido, a nossa tese é que os relacionamentos duradouros que se dão por meio dos dating apps somente existem porque seus usuários abandonaram o uso dos aplicativos e, consequentemente, a sua lógica mercantil. Pois “os dating apps tendem a transformar as relações sentimentais em um jogo baseado na lógica consumista. E disso, seus usuários são bem conscientes.” ²³ Do contrário, se não abandonam os datings apps e sua lógica, seus usuários tendem a continuar atuando como “nômades afetivos” e consumidores viciados nos jogos afetivos oferecidos pelo mecanismo do menu sempre atualizado com novos perfis. Neste sentido, permanece a pergunta se os dating apps são, de fato, meios ideais para construir relacionamentos estáveis e duradouros.

¹ A cura di Bolzetta, F. 2022. La Chiesa nel digitale: Istrumenti e proposte. Todi: Tau editrice.
² Francisco 2016, Amoris Laetitia: 143.
³ Trozenski, A. 2022. “The channging spaces of dating apps since Covid-19”. 2 de março. Acesso 02.01.2023. (https://www.vanderbilt.edu/digitalhumanities/the-changing-spaces-of-dating-apps-since-covid-19/).
⁴ America Magazine. 2015. “Swipe left: A theology of Tinder and digital dating”. 17 de Agosto. Acesso 02.01.2023. (https://www.americamagazine.org/content/all-things/i-want-hold-your-hand-new-frontiers-dating).
⁵ Miller, D. 2010. Trecos, troços e coisas: Estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro: Zahar. P. 168-169.
⁶ As cinco transformações aqui elencadas foram inspiradas nos estudos de Richard Miskolci, sociólogo brasileiro, a partir de sua obra: Desejos digitais: Uma análise sociológica da busca de parceiros on-line. 2017. Belo Horizonte: Autêntica editora.
⁷ Bauman, Z. 2004. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar. P. 19.
⁸ Francisco, Fratelli Tutti: 33.
⁹ Cucci, G. 2015. Paradiso virtuale o infer.net? Rischi e opportunità della rivoluzione digitale. Milano: Ancora. P. 45.
¹⁰ Francisco, Fratelli Tutti: 47.
¹¹ Francisco, Fratelli Tutti: 43.
¹² Francisco, idem: 205.
¹³ A teoria das relações humanas desenvolvida pelo consagrado psicanalista Eric Berne (1977), não obstante a distância temporal e as rápidas transformações antropológicas, sociológicas e tecnológicas que nos separam, permanece muito válida para compreender o funcionamento das relações e dos jogos afetivos na atualidade, principalmente ao interno do campo dos dating apps. O fundador na Análise transacional, que tem por objeto de estudo a comunicação entre as pessoas, bem como os aspectos da mudança pessoal e comportamental dos indivíduos, realiza a teoria das relações humanas a partir das necessidades afetivas básicas que se apresentam desde os primeiros instantes da vida de cada ser humano. Cf. Berne, E. 1977. Os jogos da vida. Rio de Janeiro: Arte Nova.
¹⁴ Francisco, idem: 43.
¹⁵ Ronchi, E. 2019. I Baci non dati. Milano: Paoline. P. 83.
¹⁶ Belli, M. 2021. L’epoca dei riti tristi. Brescia: Queriniana. P. 194.
¹⁷ Belli, M. 2021. L’epoca dei riti tristi. Brescia: Queriniana. p.182.
¹⁸ America Magazine. 2015. “Swipe left: A theology of Tinder and digital dating”. 17 de Agosto. Acesso 03.01.2023. (https://www.americamagazine.org/content/all-things/i-want-hold-your-hand-new-frontiers-dating).
¹⁹ Saint-Exupéry, Antoine de. 2015. O pequeno príncipe. Editora Agir: ebook.
²⁰ O conceito de profanação é expresso, de modo especial, em um pequeno volume no qual o sociólogo exprime sua preocupação em relação à possíveis banalizações em determinados comportamentos nos relacionamentos humanos que tendem a profaná-los e que, segundo ele, são inaceitáveis: «Tocar algo sagrado sem empregar as precauções respeitosas prescritas pelo rito é profaná-lo; é cometer sacrilégio. Do mesmo modo, há uma espécie de profanação em não respeitar os confins que separam os homens, em violar os limites, em penetrar indevidamente o outro.» Durkheim, E. 2021. Sull’educazione sessuale. Roma: Armando Editore. P. 86.
²¹ Bento XVI, Deus Caritas est: 2005: 6.
²² Bento XVI, Idem: 5.
²³ Bandinelli, C. Gandini, A. Sesso, amore e dating. In: Il nostro quotidiano digitale. Anno LXXI- N. 519. Bologna: Il Mulino: p. 131.

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