Juventudes, identidade racial e a educação que recomeça o mundo 

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Jéssica Oliveira

Há encerramentos que não significam fim, mas passagem. Em muitas cosmologias afro-indígenas, concluir algo não é fechar um ciclo; é abrir outro. A lógica do começo-meio-começo, formulada por Nego Bispo (Colonização, Quilombos: modos e significados), recorda que a vida é um movimento espiralado, em que cada etapa retorna transformada, conectando ancestralidade e futuro. Este último texto da série se insere justamente nessa espiral: não finaliza a conversa, mas a desloca para um novo plano de reflexão sobre juventudes, identidade racial e educação. 

Ao longo das últimas décadas, a presença das juventudes negras tem reorganizado, a partir de dentro, os espaços educativos e as práticas sociais. Elas tensionam, ampliam e desestabilizam estruturas que historicamente foram desenhadas para excluir seus corpos, suas narrativas e suas epistemologias. Como nos lembra Bell Hooks (Ensinando a transgredir), “ensinar é sempre um ato político” e, por isso, toda relação pedagógica envolve disputa sobre o que importa, quem importa e quais mundos merecem ser imaginados. Mas, se a educação é disputa, ela também é criação. Paulo Freire insistia que “a esperança é uma necessidade ontológica”, e não um adorno ingênuo. Quando falamos de juventudes racializadas, essa esperança torna-se estruturante: é força que sustenta a possibilidade de existir apesar das violências impostas por um país profundamente marcado pelo racismo estrutural. Nilma Lino Gomes (Educação, identidade negra e formação de professores) enfatiza que o racismo no Brasil “atravessa instituições e práticas cotidianas com sutileza e profundidade”. Nesse cenário, a potência criadora das juventudes não é apenas expressão cultural; é ato radical de reconfiguração do mundo

A juventude como território de invenção 

É comum que a juventude seja tratada como promessa, como um “vir-a-ser” ainda incompleto. Essa visão, porém, apaga o protagonismo do agora. A juventude é uma condição social que produz identidades em constante elaboração, negociadas em meio a pressões estruturais, desejos pessoais e heranças coletivas. Stuart Hall (A identidade cultural na pós-modernidade) afirma que identidades são processos, não essências fixas, e nenhum grupo encarna esse movimento de forma tão vibrante quanto as juventudes. Observá-las significa testemunhar linguagens que emergem, estéticas que rompem silêncios, coletivos que disputam a cidade e reinventam a política. Mesmo sob a necropolítica analisada por Mbembe, que expõe vidas negras a desvalorizações profundas, é preciso compreender que não se trata apenas de políticas explícitas de violência, mas de um arranjo estrutural que decide, de modo silencioso e persistente, quais vidas são possíveis e quais vidas são descartáveis. A necropolítica não opera apenas nas mortes físicas, diretas, mas nas mortes lentas, aquelas que retiram futuro, dignidade, oportunidade, mobilidade, voz

No Brasil, essa lógica se materializa no cotidiano das juventudes negras: no acesso desigual à escola de qualidade, na ausência de políticas de permanência, na militarização das periferias, na letalidade policial que transforma a rua em território de ameaça. Como afirma Mbembe, há sociedades em que a morte é administrada como forma de governo. Aqui, ela se manifesta na naturalização do fracasso escolar de jovens negros, no estigma que recai sobre seus corpos, nas barreiras que tentam impedir que eles sonhem para além dos limites impostos por uma sociedade que lhes reserva, historicamente, o lugar da subalternidade. 

Essa necropolítica também age no campo simbólico: quando corpos negros são associados à periculosidade; quando cabelos crespos são vistos como inadequados; quando sotaques, roupas ou modos de circular pelo mundo se transformam em justificativa para vigilância, punição ou silenciamento. É uma pedagogia do apagamento que ensina, desde cedo, que certas vidas devem pedir licença para existir

No entanto, mesmo diante desse cenário, as juventudes criam brechas. Inventam novas linguagens, reocupam espaços, refundam a experiência do viver. A potência juvenil desafia a necropolítica justamente porque insiste em existir com alegria, beleza e criatividade, o que é identificado como “força vital” que sobrevive apesar dos dispositivos de morte. As juventudes negras reinventam continuamente o sentido de liberdade ao produzir arte, música, dança, coletivos políticos, escrita e redes de cuidado. Elas transformam territórios feridos em territórios de vida. Ao colocar o corpo na rua, ao fazer da palavra um grito e da memória um caminho, esses jovens rompem com o destino que a necropolítica tenta lhes impor. Eles lembram à sociedade que, onde tentaram plantar morte, nasceu vida. E vida em movimento. 

Escola: entre ferida e possibilidade 

As escolas brasileiras, historicamente moldadas pela colonialidade, ainda carregam contradições profundas. São espaços que coletivamente desejamos como mediadores de cidadania e igualdade, mas que reproduzem desigualdades estruturais. Candau (Interculturalidade e educação) aponta que a interculturalidade crítica é um caminho para tensionar essas contradições, reconhecendo-as para não as perpetuar. 

Na prática, no entanto, jovens racializados frequentemente vivenciam apagamentos curriculares, violência simbólica, racismo institucional, criminalização de suas expressões culturais e estéticas. Munanga (Rediscutindo a mestiçagem no Brasil) denuncia como o mito da democracia racial atua dentro da escola, impedindo o reconhecimento das desigualdades e do sofrimento racial. Por isso, lutar por uma educação antirracista não é apenas corrigir falhas pontuais do currículo, mas enfrentar as raízes coloniais que moldaram o próprio conceito de escola. 

Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer: a escola é também território em disputa, e disputa implica possibilidade. É nela que se constroem relações de confiança, que emergem projetos coletivos, que se fortalecem vínculos comunitários e que novas linguagens podem florescer. Educar, nesse contexto, é ato de presença e presença, aqui, significa acolhimento, escuta e compromisso ético. 

Ubuntu e o comum como horizonte 

Se a colonialidade separa, a filosofia Ubuntu reúne onde se diz: “Eu sou porque nós somos”. É possível ampliar essa ideia ao defini-la como ontologia: existimos através das relações. Malomalo (Ubuntu e outras formas africanas de produção de conhecimento) destaca que Ubuntu não é apenas solidariedade comunitária, mas ética que orienta escolhas públicas, convívios cotidianos e políticas de cuidado. Nas juventudes, essa ética aparece na prática: no coletivo que acolhe o colega excluído; na roda de conversa que vira espaço de cura; nas redes de apoio emocional criadas para enfrentar a violência; nas manifestações culturais que afirmam pertencimentos. Ubuntu é, portanto, fundamento para pensar uma educação que se faz com as juventudes, e não sobre elas. É convite para abandonar lógicas individualistas e abraçar a compreensão de que toda aprendizagem é relacional, que toda formação é comunitária, e que nenhum futuro se constrói sozinho. 

O que aprendemos com as juventudes?  

Ao concluir esta série, podemos afirmar: são as juventudes que têm mostrado caminhos para que o Brasil reinvente a si mesmo. Elas demonstram que a educação antirracista não depende apenas de políticas públicas, mas de relações mais humanas, de escutas mais profundas e de escolas que reconheçam a potência que habita cada corpo racializado. 

Mbembe nos lembra que imaginar novos mundos é tarefa urgente diante das ruínas coloniais. As juventudes fazem isso diariamente: imaginam, criam, tensionam, afirmam, insistem. Elas não carregam o futuro, elas são o futuro acontecendo. Encerrar estas reflexões é voltar ao ponto de partida: reconhecer que educar é participar do mesmo movimento espiralado que rege a vida. Se o mundo precisa recomeçar, que recomece com aquilo que as juventudes nos ensinam: que a dignidade é inegociável, que a ancestralidade é força viva, que o comum é horizonte possível e que a educação pode, sim, transformar sociedades inteiras. 

Que este fim seja, como ensina Nego Bispo, apenas mais um começo. 

Referências  

BISPO, Antônio. Colonização, Quilombos: modos e significados. 2. ed. Brasília: INCTI, 2020. 

CANDAU, Vera Maria. Interculturalidade e educação. Petrópolis: Vozes, 2016. 

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. 

GOMES, Nilma Lino. Educação, identidade negra e formação de professores. Petrópolis: Vozes, 2012. 

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. 

HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017. 

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018. 

MALOMALO, Bas’Ilele. Ubuntu e outras formas africanas de produção de conhecimento. Caderno de Estudos Africanos, n. 36, p. 1-18, 2018. 

MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2015. 

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