Jessíca Oliveira
“Eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer.”
Conceição Evaristo
Em tempos de pressa e esquecimento, falar de ancestralidade é quase um gesto de resistência. Num mundo em que tudo parece descartável, como as relações, os sonhos e até as próprias histórias, lembrar-se de quem veio antes é afirmar que existimos por meio de uma corrente de afetos, lutas e memórias que nos sustentam. As juventudes, em sua vitalidade criadora, encontram nesse fio invisível da ancestralidade uma forma de se reconhecer e de ressignificar o próprio caminho.
A ancestralidade não é apenas lembrança; é movimento, é presença. Está nas palavras ditas pelas avós, nas canções que atravessam gerações, nos modos de viver que escapam ao controle do tempo. Espaços coletivos, como a escola ou centros formativos são fundamentais para a reconstrução e reconexão das identidades negras, pois é na ancestralidade que os sujeitos podem reencontrar as narrativas apagadas pela história oficial. Quando a escola e outros espaços reconhecem os saberes ancestrais, como os modos de plantar, de dançar, de rezar e de sonhar, ela se transforma em território de memória viva e de reencantamento.
Pensar a ancestralidade como categoria educativa é romper com a ideia de que o conhecimento nasce apenas dos livros ou das academias. É compreender que há sabedoria nas práticas cotidianas das comunidades tradicionais, nos rituais, nos corpos e nas vozes que o tempo insistiu em silenciar. Ferreira-Santos (2005) nos lembra que a ancestralidade é “um movimento que nos faz lembrar quem somos, mesmo quando o mundo tenta nos fazer esquecer”. Ela é, portanto, uma forma de cuidar da memória, e cuidar da memória é também cuidar do futuro, é como evidenciar a atualidade da ancestralidade. Como podemos observar no quadro do artista baiano J. Cunha que traz elementos da cultura brasileira fortemente inspirados em nossos ancestrais africanos. Seu trabalho nos mostra que a ancestralidade não está ligada somente a tais raízes culturais, mas também à sua continuidade. É presente e futuro.

A compreensão do tempo proposta por Nêgo Bispo (2015), por meio da teoria do Começo-Meio-Começo, amplia ainda mais essa perspectiva. Diferente da visão linear e progressiva típica da modernidade, Bispo nos convida a enxergar o tempo como uma espiral contínua: o começo nunca deixa de existir, o meio transforma e o recomeço renova. Assim, a ancestralidade não é um ponto fixo do passado, mas uma força viva que atravessa o presente e projeta-se no futuro. Cada gesto dos jovens é uma continuidade, um recomeço daquilo que seus ancestrais iniciaram.
Essa dimensão do tempo se conecta naturalmente com a filosofia Ubuntu, originária de povos Bantu do sul da África. Ubuntu, que pode ser traduzido como “eu sou porque nós somos”, propõe uma ontologia da interdependência e da comunhão: o ser humano só se realiza na relação com o outro, na solidariedade, no coletivo. Para as juventudes, especialmente as negras, indígenas e periféricas, essa filosofia oferece um contraponto à cultura do isolamento e ao individualismo hegemônico. Participar de coletivos culturais, movimentos sociais, grupos de estudo e redes de apoio não é apenas estratégia de sobrevivência; é modo de existir plenamente.
Fogo!… Queimaram Palmares, Nasceu Canudos
Fogo!… Queimaram Palmares,
Nasceu Canudos.
Fogo!… Queimaram Canudos,
Nasceu Caldeirões.
Fogo!… Queimaram Caldeirões,
Nasceu Pau de Colher.
Fogo!… Queimaram Pau de Colher…
E nasceram, e nasceram tantas outras comunidades que os vão cansar se continuarem queimando.
Porque mesmo que queimam a escrita,
Não queimarão a oralidade.
Mesmo que queimem os símbolos,
Não queimarão os significados.
Mesmo queimando o nosso povo
Não queimarão a ancestralidade
(Nêgo Bispo)
Educar para a ancestralidade e para o coletivo é, portanto, educar para o encontro. É criar espaços em que o aprendizado se dá pelo corpo, pela memória, pelo diálogo intergeracional e pelo pertencimento coletivo. É reconhecer que cada juventude carrega dentro de si ecos de seus ancestrais e que seu protagonismo não é ruptura, mas continuidade. A escola, a comunidade e as redes culturais tornam-se assim territórios de troca, cuidado e construção conjunta de significados. Como diz Frantz Fanon (1952), é preciso reconstruir a humanidade ferida pelo racismo e pela colonização, e isso só é possível quando reconhecemos o valor dos nossos próprios modos de existir. Essa força da reconstrução é vista e sentida na arte, como posta por Antônio Bispo dos Santos no poema a seguir:
Nesta poesia, Bispo reconta a história do Brasil pela chama da resistência. Cada “fogo” que destrói lugares sagrados e importantes como foram os quilombos de Palmares, Canudos, Caldeirões e Pau de Colher, gera outro levante, outro corpo coletivo que renasce das cinzas. A repetição rítmica encena a teimosia vital dos povos oprimidos. O fogo, em vez de fim, é parto. A mensagem final afirma a força da oralidade e da ancestralidade: símbolos e corpos podem ser queimados, mas o saber, transmitido pela fala e pela memória, permanece incombustível. É um poema de cosmovisão afro-pindorâmica, em que a resistência é circular, o que morre volta a nascer pela força do coletivo.
Em tempos de desconexão e fragmentação social, as juventudes nos lembram que o futuro só se constrói quando se respeita o passado e se valoriza o coletivo. Entre o Começo-Meio-Começo e o Ubuntu, emerge um horizonte de possibilidades: a vida é cíclica, comunitária e relacional. O aprendizado, como a própria ancestralidade, é contínuo; cada gesto, cada ação, cada palavra é recomeço, é ponte entre gerações. É nesse movimento que as juventudes encontram forças para existirem, resistirem e transformarem o mundo ao seu redor.
“O começo não é antes nem depois do meio; é o mesmo movimento que nos mantém vivos”
(Nêgo Bispo).
Referências
BISPO DOS SANTOS, Antônio (Nêgo Bispo). Colonização, quilombos: modos e significações. 2. ed. Brasília: INCT, 2015.
BISPO DOS SANTOS, Antônio. Fogo!… Queimaram Palmares, Nasceu Canudos. In: “3 poesias de Antônio Bispo dos Santos para repensar a colonização”. Livro&Café, 4 jul. 2023. Disponível em: <https://livroecafe.com/3-poesias-de-antonio-bispo-dos-santos-para-repensar-a-colonizacao/>. Acesso em 6 nov. 2025.
CUNHA, J. Uanga, individual de J. Cunha. 2023. Disponível em: <https://select.art.br/nosso-futuro-ancestral/>. Acesso em 6 nov. 2025.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
FERREIRA-SANTOS, Marcos. Ancestralidade e experiência: educação, tradição e espiritualidade. São Paulo: Cortez, 2005.
GOMES, Nilma Lino. Educação e identidade negra: pesquisa e formação de professores. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
RAMOSE, Mogobe B. Ubuntu: filosofia africana. São Paulo: Perspectiva, 2011.







