Giovani do Carmo Junior
Nos livros bíblicos do Antigo Testamento percebemos a presença e a importância de líderes. A Juíza Débora, Rainha Ester, Rei Davi, o grande Moisés e os profetas Elias, Eliseu e Jeremias entre outros são figuras extremamente importantes na história do povo hebreu. Tanto é assim que permaneceram vivos nas memórias do povo até o tempo de Jesus. Suas histórias são marcadas por encontros profundos com Deus que os impulsionou e enviou a assumirem funções de serviço, profecia e guia do povo. Dentre estes, podemos destacar o jovem Samuel que discerniu seu caminho com a ajuda de Eli (cf. 1Sm 3, 1-10).
Jesus de Nazaré foi líder de um grupo de discípulos. Entre os quais figuravam mulheres e homens galileus e de outras regiões. Posteriormente estes foram constituídos líderes para as comunidades nascentes reunidas sob o nome de Jesus de Nazaré, o Cristo. A comunidade se identifica com uma pessoa, com o seu projeto de vida baseado no amor aos pequenos e pobres e assume um nome identificador: cristãos (cf. At 11, 26).
O serviço de liderar, inicialmente exercido por Jesus, posteriormente foi assumido por seus discípulos. Seguindo a imagem do corpo, a comunidade cristã primitiva progressivamente tomou consciência que haveria de se reconhecer, valorizar e integrar a diversidade de pessoas e seus dons para que fosse possível a vida em comum (cfr. 1 Cor. 12,12). Tendo em conta a diversidade de membros e dos serviços necessários para a edificação do corpo comunitário, alguns assumiram o exercício do serviço de líder da comunidade (Lumen Gentium, n.7).
Este Ministério exprassa-se como um serviço assumido segundo critérios claros, tendo como objetivo a vida em comunidade. No final do século I já havia nas comunidades os critérios e ritos próprios para escolha e instituição desse ministério: indivíduos experimentados e irrepreensíveis sob os quais se impunham as mãos invocando o Espírito Santo (cf. At 6,6; 1Tm 3,8-13). A presença de mulheres, por exemplo, no evangelho joanino assumindo funções e exercendo ações parecem nos indicar que elas também assumiam serviços dentro da comunidade, como é o caso da Samaritana e de Marta (BROWN, Raymond. A comunidade do discípulo amado. p. 197).
Nesse ponto cabe-nos colocar algumas perguntar para nos ajudar a clarificar o fenômeno da liderança exercida por jovens em suas comunidades e contextos:
o que compreendemos por liderança? O que torna alguém líder? O líder é uma qualidade ou uma ação que se exerce? A liderança é um dado genético de nascimento ou um dado carismático gestado e preparado? Os tipos de líderes tem algo que ver com a instituição, grupo ou realidade na qual a liderança se exerce? Como os jovens veem a posição de liderança na atualidade? Como pensam a relação dos líderes com as suas comunidades? Os influenciadores digitais são líderes?
Colonização dos modos de liderar
A liderança é um tema presente entre os debates atuais mais relevantes de instituições no tocante à gestão de empresas e pessoas. Basta-nos abrir o navegador da Google e lançar uma pesquisa sobre liderança. Percebemos logo a abundante oferta de cursos de MBA em “Liderança e Gestão de Pessoas”, “Liderança e Gestão de Equipes”, “Liderança e Alta Perfomance” etc. O léxico a respeito da liderança está se restringindo ao vocábulo do mercado na atualidade. Ser líder em qualquer instituição (religiosa ou secular) na atualidade se configura pela gestão de pessoas baseada na motivação e no reconhecimento com forte foco no papel de inspirar as pessoas ao alto rendimento baseado em seu exemplo pessoal por ser um espelho moral de produtividade e felicidade.
A liderança comunitária baseada no projeto de Jesus parece se constituir de outra maneira. Ainda mais, parece-nos possível nos perguntar pela maneira como emergem as lideranças no tecido sociohistórico. Isto é, partimos do pressuposto das tipologias bíblicas que para que alguém assume a responsabilidade de liderar um grupo ou um processo, faz-se necessário um caminho educativo. Um caminho constituído por processos históricos, psíquicos e espirituais. Assim, para a emergência de lideranças juvenis capazes de exercerem o serviço de liderar comunidades e grupos rumo a um futuro cheio de esperança, é preciso condições de possibilidade para que isso ocorra de maneira saudável, integradora e libertadora.
Condições materiais
Vivemos um cenário mundial capaz de provocar profunda desesperança nas juventudes. O relatório “Desvelar las disparidades de etnia, casta y género” de 2021 realizado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) com 109 países aponta que um total de 1,3 bilhão de pessoas estava em situação de pobreza multidimensional aguda. Cerca de 644 milhões são crianças e adolescentes menores de 18 anos, 105 milhões são idosos de mais de 60 anos, 85% estão na África Subsaariana e na Ásia Meridional, 84% em zonas rurais e 16% em contexto urbano. Encontram-se privados de escolaridade, ativos, água potável, saneamento básico, eletricidade, em situação de subalimentação, expostos à queima de combustíveis fósseis para cozinhar e habitam em casas construídas com materiais inadequados (PNUD. Desvelar las disparidades de etnia, casta y género. p. 3-6).
“A desigualdade é a raiz dos males sociais” (Evangelii Gaudium, n. 202). Segundo dados da OXFAM, “pela primeira vez em 25 anos, a riqueza e a pobreza extremas aumentaram muito, e ao mesmo tempo. Em 2020, mais de 70 milhões de pessoas foram empurradas para a pobreza extrema (viver de 2,15 dólares por dia), um aumento de 11%” (OXFAM. A “Sobrevivência” do mais rico: por que é preciso tributar os super-ricos agora para combater as desigualdades. p. 18). No período pandêmico os índices de pobreza monetária e multidimensional aumentaram e o abismo social foi alargado, tendo em vista o aumento de desemprego, de trabalho informal, evasão escolar e ausência de proteção social (OXFAM. Nota Metodológica: A “Sobrevivência” do mais rico).
A América Latina e o Caribe é um imenso território caracterizado pela pluralidade de povos, tradições, ecossistemas, experiências religiosas e diversidades culturais. O povo deste continente tem sua formação devido um processo de colonização europeia baseado na extração de recursos. Extrair causando mortes, imigrações, migrações, torturas e inúmeras violações da dignidade humana. Um Continente feito de sangue e suor.
As raízes da violência, da humilhação, da exclusão e da escravização permanecem vivas nos processos de subjetivação que se desenvolvem ainda nestas terras cujo solo e corpo é indígena e africano (SOUZA, Jessé. Brasil dos humilhados). Desde então, ser líder se confunde com o assumir funções de poder as quais possibilitam decidir quem tem a dignidade de viver e quem pode ser morto pelo extermínio do Estado, da sociedade civil, do narcotráfico e das guerrilhas (NUNES, Rodrigo. Nexo entre biopolítica, necropolítica e neoliberalismo à luz da pandemia de covid-19). Por isso, não nos admira que o imaginário juvenil seja colonizado pelo sonho de serem policiais, militares, milicianos ou líderes do tráfico de drogas em suas comunidades.
Condições psicodinâmicas
As dinâmicas psíquicas dos grupos e comunidades presenciais e digitais parecem também desfavorecer a emergência de lideranças comprometidas com a integralidade da vida. Vale notar nesse ponto os grupos fundamentalistas religiosos e as comunidades constituídas por meio de aplicativos digitais. O grupo pode possibilitar o desenvolvimento integral de jovens e a emergência de líderes que deem continuidade ao grupo. Todavia, dentro do grupo podem se desenvolver dinâmicas capazes de devorar as pessoas e seu o desenvolvimento saudável provocando profundo sofrimento psíquico. Assim, grupo regido por líderes passa a ser local retroalimentador de segregação, opressão, violência, cerceamento e sofrimento físico e psíquico.
Faça um exercício rápido de questionar os jovens de um grupo sobre o que é ser líder. Rapidamente alguém pode dizer que ser líder tem a ver com a relação estabelecida com os liderados por ser o elemento que mais se destaca no processo da liderança. Ou aquele mote: um líder é reconhecido por seu modo agir. Em Psicologia das Massas e análise do Eu, Sigmund Freud afirma que em um grupo quando não respeitamos as individualidades com suas histórias e equalizamos todos no mesmo processo, constituímos uma MASSA uniforme onde todos são a mesma coisa mesmo que nem todos sejam iguais ou se vejam como iguais.
Nesse caso, “cada indivíduo se acha ligado libidinalmente ao líder, por um lado, e aos outros indivíduos da massa, por outro lado” (FREUD, S. Psicologia das Massas e análise do Eu. p. 37). O pressuposto é que todos são amados igualmente pelo líder onipotente, onipresente e onisciente. Contudo, o líder não precisa amar verdadeiramente ninguém. Ele pode se portar como o patrão, absolutamente narcisista, seguro de si e independente. Assim, o que agrega a massa é a ilusão de ser amado por um amor igual e justo direcionado. O amor do líder submete os seus e promove o ódio aos diferentes e ausentes do seu grupo massificado. Assim, “um grupo religioso pode facilmente empenhar-se em fortalecer sua ilusão afastando a todo custo qualquer coisa que desmascare o caráter ilusório de sua experiência” (MORANO, Carlos Domínguez. Crer depois de Freud. p. 313).
Há situações em que ser líder consiste em cercear e submeter o outro aos próprios desejos. Situações psíquicas em que as pessoas também deixam de adquirir ou perdem a capacidade de uso autônomo da razão. Afirma Christian Dunker, suspende-se a crença na palavra como instância de mediação de conflitos, resiste-se a escutar o outro e pode-se lançar em atividades impulsivas. Como atividades impulsivas, lembremos dos casos de suicídio e automutilação de crianças, adolescentes e jovens ocorridos em jogos promovidos por comunidades digitais. Além disso, nessas dinâmicas grupais sob a coordenação de um líder, tende-se a esquecer a própria história assumindo um ideal para se viver. Parece que a identificação de massa, a colocação de um líder como objeto ideal de eu e a emergência de formas regressivas e segregativas de amor são fatores de discernimento para percebermos as ameaças psicológicas ao desenvolvimento de líderes e de grupos juvenis.
Contudo, há outras ameaças psíquicas. Em toda dinâmica grupal há uma disputa pela exceção. Ser excepcional, separar alguém da massa por seus dotes e méritos individuais, produz um sentimento de profundo reconhecimento. A excepcionalidade torna o líder ou os seus amados pertencentes a um grupo seleto e particular formado por estrelas, coordenadores, colaboradores e preferidos. Os membros submetem sua vida ao grupo e ao líder excepcional se tornando também um ser especial identificado e distinguido por certos símbolos e condutas morais. Um ser protegido contra as mazelas da vida cotidiana. Enquanto isso, o líder e o grupo incitam a crueldade e a violência contra os outros ausentes e incrédulos da fé professada pelo grupo ou pela bolha digital (DUNKER, Christian. Psicanálise das massas digitais e análise do sujeito democrático. p. 134).
Condições espirituais: obstáculos para encontrar o Deus de Jesus
Assomado aos fatores histórico-materiais e psíquicos, está a vida espiritual. Papa Francisco durante seu pontificado insistiu sobremaneira sobre o perigo, o risco e o mal do mundanismo espiritual. O mundanismo espiritual se esconde por detrás de aparências de religiosidade e de amor à Igreja, mas busca, em vez da glória do Senhor, a glória humana e o bem-estar pessoal (Evangelii Gaudium, n.93).
Deste elemento brotam duas doenças gravíssimas e um câncer terminal. O neognosticismo se desenvolve no caminho espiritual como domínio do mistério de Deus e da vida dos outros por sistemas mentais e psicológicos fechados e perfeitos (Gaudete et Exsultate, n.40). O neopelagianismo se estabelece por meio de relações pautadas na meritocracia e na autocomplacência egocêntrica e elitista (Gaudete et Exsultate, n.57). E o clericalismo é o grande câncer ameaçador que corrói a vida espiritual dos jovens e de toda comunidade onde se prepara líderes. O clericalismo é a visão elitista e excludente do serviço à comunidade, porque o ministério de liderar é entendido como poder a ser exercido sobre os outros ao invés de possibilidade de servir a comunidade em prol do bem e da vida de todos (Discurso do Papa Francisco de abertura da XV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos [03 outubro 2018]).
Portanto, para propormos um processo educativo em vista da constituição de lideranças juvenis é necessário nos perguntarmos sobre as condições de possibilidade materiais, psíquicas e espirituais que os jovens encontram em sua realidade pessoal, em seu contexto sociocultural e na vida da comunidade eclesial onde se encontra. Devemos nos perguntar e saber se os jovens possuem as condições necessárias e favoráveis para ser possível darem vasão ao seu desejo de agregar, cuidar, salvaguardar e liderar pessoas em prol do desenvolvimento pleno e integral em um caminho de paz e justiça segundo o projeto de Jesus de Nazaré.
Referências
BROWN, Raymond E, S.S. A comunidade do discípulo amado. Trad. Euclides Carneiro da Silva. São Paulo: Paulinas, 1983.
CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Dogmática Lumen Gentium. In: _____. Compêndio Vaticano II. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2000.
DUNKER, Christian. Psicanálise das massas digitais e análise do sujeito democrático. In: Democracia em risco? 22 ensaios sobre o Brasil Hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
FRANCISCO. Discurso do Papa Francisco de abertura da XV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (03 outubro 2018). Disponível em: < https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2018/october/documents/papa-francesco_20181003_apertura-sinodo.html >. Acessado: em 08 mai. 2025.
FRANCISCO. Evangelii Gaudium. São Paulo: Paulinas, 2013.
FRANCISCO. Gaudete et Exsultate. São Paulo: Paulinas, 2018.
FREUD, S. Psicologia das Massas e análise do Eu. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
MORANO, Carlos Domínguez. Crer depois de Freud. Trad. Eduardo Dias Gontijo. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
NUNES, Rodrigo. Nexo entre biopolítica, necropolítica e neoliberalismo à luz da pandemia de covid-19. In: CONGRESSO INTERNACIONAL BIOPOLÍTICAS NO SÉCULO XXI, 2, 2021. Politicrim, 28 out. 2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=9j36rxaEeXE&t=2858s>.
OXFAM. A “Sobrevivência” do mais rico: por que é preciso tributar os super-ricos agora para combater as desigualdades. São Paulo: OXFAM Brasil, 2023.
OXFAM. Nota Metodológica: A “Sobrevivência” do mais rico. São Paulo: OXFAM Brasil, 2023.
PNUD. Desvelar las disparidades de etnia, casta y género. 2021.
SOUZA, Jessé. Brasil dos humilhados: uma denúncia da ideologia brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2022.