(Autobiografia, 38-40).

Escrito por Pe. Felipe de Assunção Soriano, SJ

A pobreza pode nos trazer muitos inconvenientes, mas ser veículo para uma solidariedade que inquieta e uma maturidade que liberta. Na viagem de Barcelona à Gaeta (Itália), com vento contrário e muita tempestade, Inácio ganha novos amigos. Ao desembarcar, molestados pelo medo da peste que assolava a região, decide seguir para Roma. Na viagem, juntou-se a sua companhia outros mendigos como ele, a saber, uma mãe, com uma filha e um rapaz. A pobreza faz os fracos se fazerem fortes… porque com companhia se enfrenta tudo, até à noite mais escura.

Chegando a uma propriedade fortificada, como era noite, decidiram aí ficar. Próximos a uma fogueira, onde se aqueciam soldados, foram recebidos, alimentados e incentivados a beber. A insistência dos soldados não escondia sua má intenção para que se embriagassem. Depois, foram separados: a mãe e a menina ficaram num quarto superior e Inácio e o rapaz num estábulo. Quando chegou à meia noite, ouviu-se gritos de mulher no andar de cima. Correndo ao pátio encontrando a mulher com sua filha chorosa.

Inácio ao ver a dor e o constrangimento que padecia aquela Senhora, sem suas armas, decidiu lutar com aquilo que possuía. Prontamente se colocou a gritar injurias que todos puderam ouvir naquela casa. O rapaz, que estava com Inácio, com medo da confusão fugiu sem deixar rastro. Como não havia mais remédio, partem os três sozinhos enfrentando a noite escura. Nesta hora Inácio se percebe imensamente pobre, não podendo defender como devia a honra daquela senhora por causa de sua pobreza. Quando nos tiram tudo, descobrimos que ainda temos voz, isto é, ainda é possível soltar um grito!

Na cidade vizinha, a caminho de Roma, depois de mendigar e nada encontrar, já não podendo caminhar mais por pura fraqueza, aproveitando a visita da senhora do lugar, confessando estar doentes, pedem para entrar na sua cidade para obter algum remédio. Com a licença da senhora, conseguiram alguns quatrins (moeda do lugar), detendo-se nesta cidade por dois dias, chegando a Roma no Domingo de Ramos. Novamente a sabedoria dos pobres se faz sentir, pois, onde as portas se abrem, é necessário colher os frutos que são abundantes enquanto temos, para que quando venham a faltar nos console a certeza de tê-los internamente. Essas vivências são o chão da sabedoria que as regras de discernimento emanam nos Exercícios.

Assim recomenda Inácio na regra 5º: “No tempo da desolação não se deve fazer mudança alguma, mas permanecer firme e constante nos propósitos e determinações em que se estava no dia anterior a esta desolação ou nas resoluções tomadas antes, no tempo da consolação” (EE 318). Como se lê na regra 8º: “O que está em desolação esforce-se por se manter na paciência, virtude oposta às aflições que lhe sobrevêm. E pense que bem depressa será consolado…” (EE 321) pois, na regra 6º, “uma vez que na desolação não devemos mudar os primeiros propósitos, muito aproveita reagir intensamente contra a mesma desolação…” (EE 319). Por isso, “quem está em consolação preveja como se há de portar no tempo de desolação, que depois virá, tomando novas forças para esse tempo (EE 323).

Depois de ter recebido a benção do Papa Adriano VI, parte para Veneza oito ou nove dias depois da Páscoa da ressureição. Trazia consigo seis ou sete ducados que havia recolhido, movido pelo temor de não conseguir embarcar sem dinheiro. Mas dois dias depois de ter saído de Roma, começou a ver que aquilo tinha sido desconfiança e pesou-lhe muito ter aceitado os ducados, e considerava se seria bom deixá-los; deliberando gastá-los generosamente com aqueles que eram pobres. E sua decisão se firmou, pois, quando chegou a Veneza, não levava consigo mais que poucos quatrins, que lhes foram necessários naquela noite.

A forma como Inácio faz o discernimento das moções que o movia com relação a esses ducados estão como matéria de fundo para a meditação das três classes de homem (EE 149). Inácio convida aqueles que se examinam a abraçar o que for melhor, pois essa meditação visa testar nossa capacidade e sinceridade para tomar escolha livre. Os três tipos de homens aqui registrados refletem as três etapas vividas por Inácio neste relato, pois ele transita da dúvida se devia juntar dinheiro para a viagem à certeza de que deveria antes colocar seu afeto em Deus buscando uma profunda indiferença em tê-la ou não. Este é o verdadeiro sentido da vida, ser rico para Deus.

Texto bíblico: Lc 12, 13-21

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