Afetos que salvam: juventudes, cuidado e resistência 

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Jéssica Oliveira

Em um país como o Brasil, onde a desigualdade racial se traduz em estatísticas duras e em violências cotidianas, as juventudes negras, indígenas e periféricas reinventam diariamente formas de existir. Fazem isso não apenas por meio da luta política explícita, mas principalmente por meio do afeto, essa força silenciosa, ancestral e profundamente revolucionária. O afeto aparece como gesto ético, como amparo comunitário e como tecnologia social de sobrevivência. Ele protege, sustenta, cura e devolve humanidade a corpos marcados pela história e pelo presente de opressões

Para muitas juventudes, o afeto não é acessório: é condição de vida. E, nesse sentido, compreender essas redes de cuidado é compreender também como esses jovens produzem mundos, resistem ao racismo estrutural e reconfiguram as experiências de pertencimento. 

Afeto como herança política e ancestral 

O cuidado que emerge nas juventudes racializadas tem raízes profundas, que antecedem a modernidade colonial. Povos africanos e indígenas sempre compreenderam a vida como um sistema relacional, no qual o indivíduo só existe em vínculo com o coletivo. Essa ética do comum atravessa filosofias, espiritualidades, modos de vida e práticas sociais. Ela se materializa na partilha, na oralidade, nos rituais de passagem, nos mutirões, nas festas, nos enterros, nos batizados, nos cantos, nas rezas, nos momentos comunitários que articulam dor e celebração. Ao atravessar o sequestro colonial, a diáspora, o genocídio e a violência sistemática, essa ética não desapareceu, pelo contrário, adaptou-se, reinventou-se e se tornou fundamento da resistência. Quilombos, aldeias, e comunidades religiosas ou de vivências produziram formas de cuidado que garantiram a vida quando o Estado falhou, quando a violência se intensificou e quando a sobrevivência se tornou uma tarefa coletiva. 

Hoje, as juventudes atualizam essa herança ancestral por meio de laços que não se explicam apenas pela amizade ou pela afinidade, mas por algo maior: a consciência de que viver em um corpo racializado requer proteção mútua. É Ubuntu, é Bem Viver, é “nós por nós”, é quilombar, práticas diferentes, mas que convergem para a mesma lógica: cuidar é existir. 

Racismo estrutural e vulnerabilidade emocional: quando o cuidado se torna escudo 

O racismo estrutural é mais do que um conjunto de práticas discriminatórias. Ele é um sistema que organiza vidas, relações, afetos, acessos e expectativas. Nas juventudes, isso se traduz em muitas camadas: 

  • o medo cotidiano da violência policial; 
     
  • a sensação de inadequação em espaços escolares e universitários; 
     
  • a dificuldade de projetar o futuro em contextos de vulnerabilidade; 
     
  • o impacto da estética eurocêntrica sobre a autoestima; 
     
  • a ausência de representatividade positiva; 
     
  • o silenciamento das narrativas negras; 
     
  • a reprodução de desigualdades familiares, territoriais e econômicas. 
     

Essas violências, embora muitas vezes sutis, acumulam efeitos emocionais profundos. A juventude negra é a que mais sofre com ansiedade, depressão e desesperança, não por fragilidade individual, mas pela pressão constante do racismo. É nesse território de vulnerabilidade emocional que o cuidado surge como escudo. O afeto protege não apenas psicologicamente, mas existencialmente. Ele diz: “você não está só”, frase que, nesse contexto, deixa de ser conforto para se tornar política de sobrevivência. Como lembra Bell Hooks, o amor é um ato de resistência, especialmente quando direcionado a quem a sociedade tenta desumanizar. 

 Redes jovens de proteção: coletividades que sustentam 

As juventudes não esperam soluções institucionais para criar mecanismos de cuidado. Elas se organizam, fortalecem-se e constroem redes próprias, muitas vezes invisíveis para quem observa de fora. Essas redes têm diferentes formas: 

  • Coletivos culturais que articulam arte, política e cuidado (slams, batalhas, grafite, música, dança, audiovisual); 
     
  • Terreiros, igrejas, aldeias urbanas que funcionam como comunidades de escuta e pertencimento; 
     
  • Redes digitais de apoio emocional e acolhimento; 
     
  • Movimentos estudantis e universitários que acolhem estudantes negros e indígenas; 
     
  • Projetos comunitários ligados à educação, cultura, esporte e espiritualidade; 
     
  • Grupos de estudo e mentoria que ajudam a abrir caminhos para a escola e a universidade. 
     

Esses espaços são terapêuticos sem serem consultórios clínicos; políticos sem serem partidos; espirituais sem serem necessariamente religiosos. Eles geram vínculo, fortalecem identidade e criam uma pedagogia do cuidado que muitas instituições ainda não compreenderam. 

Cuidado como pedagogia: o que a escola pode aprender com as juventudes 

A escola, muitas vezes, espera que os jovens deixem seus conflitos na porta, como se o espaço educativo fosse neutro e asséptico. Mas, juventudes racializadas chegam à escola acompanhadas de uma história que não pode ser descartada. E é justamente o afeto que, quando acolhido, transforma a relação pedagógica. 

Educar com afeto não é sentimentalizar a educação. É reconhecer: 

  • que estudantes precisam ser vistos; 
     
  • que políticas antirracistas exigem vínculos; 
     
  • que a escuta é um ato pedagógico; 
     
  • que o acolhimento é condição para o aprendizado; 
     
  • que a escola deve ser um lugar seguro para corpos vulnerabilizados. 
     

Uma educação comprometida com a justiça racial precisa compreender o afeto como dimensão política. Ele não substitui a mudança estrutural, mas possibilita que ela aconteça. Uma escola que acolhe é uma escola que devolve esperança e, para muitos jovens, esperança é o primeiro passo para projetar futuros. 

Afeto como horizonte de futuro 

As juventudes negras mostram que o futuro não é uma abstração distante, mas uma prática coletiva cotidiana. Nas conversas longas, nos abraços demorados, nos “chega mais”, nos acolhimentos silenciosos, nas risadas que sobrevivem às estatísticas, nas amizades que se tornam família, elas produzem mundos mais habitáveis. O futuro não se anuncia em grandes discursos. Ele nasce nos gestos pequenos, nos vínculos que salvam, na coragem de seguir vivendo com dignidade em um país que ainda insiste em negar isso a muitos. 

O afeto, aqui, é força política. 
É continuidade da ancestralidade. 
É criação de novas possibilidades de existência. 
É horizonte que resiste. 

Ao cuidarem umas das outras, as juventudes não apenas enfrentam o presente, elas inauguram mundos em que a vida pode, enfim, florescer. 

Referências 

HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017.  

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018. 

MALOMALO, Bas’Ilele (org.). Ubuntu: fundamentos filosóficos e aplicações contemporâneas. São Paulo: Autêntica, 2018. 

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