Pe. Jean Poul
O Concílio Vaticano II, convocado pelo Papa São João XXIII, foi um grande encontro de todos os quase 5 mil bispos do mundo inteiro, para rezar, refletir e discernir sobre os caminhos da Igreja e o seu necessário aggionarmento (um tipo de atualização).
É preciso que a Igreja, depositária do tesouro da fé, imutável, saiba traduzi-lo para o ser humano de hoje. Não adianta sermos portadores da melhor de todas as notícias do mundo se não a soubermos dizer numa linguagem acessível às pessoas com quem convivemos. “Ai de mim se eu não anunciar Evangelho!” (1Cor 9,16)
De 11 de outubro de 1962 a 8 de dezembro de 1965, os bispos do mundo inteiro passaram cerca de três meses por ano no Vaticano (por isso Vaticano II, o Vaticano I já havia acontecido em 1869 – 1870), trabalhando arduamente nos processos de discernimento da Igreja. Foram 4 sessões (1962, 1963, 1964 e 1965) que geraram 16 documentos (4 Constituições, 9 Decretos e 3 Declarações), que aperfeiçoaram a compreensão da Igreja sobre o Mistério de Deus e sua Revelação, sobre si mesma e sobre a forma de estar presente e atuar no mundo em que vivemos.
O chamado à santidade no Concílio Vaticano II
O Concílio Vaticano II relançou para todos os fiéis cristãos o chamado à santidade, quando na Constituição Dogmática Lumen Gentium, sobre a Igreja, dedicou todo o 5º capítulo à Vocação Universal à Santidade, no qual afirma: “Nós cremos que a Igreja é indefectivelmente santa. […] Por isso, todos na Igreja são chamados à santidade” (Lumen Gentium, n.39).
Este chamado universal à santidade (cap. 5), que é a plenitude da vida cristã, está situado entre autocompreensão que a Igreja tem de si mesma como mistério (Cap. 1), como povo de Deus (Cap. 2), hierarquicamente organizado (Cap. 3), mas formado por uma infinidade de cristãos leigos e leigas (Cap. 4) e a Vida Religiosa consagrada (Cap. 6) que, por profissão religiosa, radicaliza esse chamado, testemunhando pelo seu ser a vocação de todo cristão, por sua índole escatológica (Cap. 7). A Bem-aventurada Virgem Maria (Cap. 8) é o exemplo mais sublime da Igreja, aquela que realiza com perfeição a vocação cristã.
A santidade para a qual o Concílio chama todos os fiéis cristãos está radicada no Batismo, “no qual todos foram feitos filhos de Deus e participantes da sua natureza divina, e por isso mesmo verdadeiramente santos” (Lumen Gentium, n.40); é obra conjunta do sujeito e da graça de Deus: “devem, portanto, com a ajuda de Deus, conservar e aperfeiçoar na sua vida a santidade que receberam” (Lumen Gentium, n.40).
Até aquele momento, no subconsciente da Igreja, ser santo era tarefa dos consagrados pelo sacramento da Ordem (bispo, padres e diáconos) e pelos votos religiosos (monges, frades, freiras etc.). Contudo, os padres conciliares afirmam: “todos os fiéis, seja qual for o seu estado ou classe, são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade” (Lumen Gentium, n.40). Santidade, portanto, é plenitude de amor-caridade, na plenitude do caminho normal da vida cristã. E eles continuam: “por esta santidade se promove também na sociedade terrena, um teor de vida mais humano” (Lumen Gentium, n.40). Ou seja, santidade tem sinais e consequências histórico-sociais, que são penhor de humanidade e jamais de desumanização.
É a mesma santidade que se manifesta como perfeição do próprio estado de vida nos cristãos leigos e leigas, naqueles e naquelas que professam os votos religiosos na Vida Consagrada e nos que receberam o sacramento da Ordem. “Todos os fiéis são convidados e obrigados a tender para a santidade a perfeição do estado próprio” (Lumen Gentium, n.42).
Os caminhos e meios para a santidade identificados pelos padres conciliares são, em primeiro lugar a caridade pela qual amamos a Deus e ao próximo; depois ouvir/ler a Palavra de Deus e realizá-la na vida cotidiana; aproximar-se dos sacramentos, especialmente da Eucaristia; a oração; a abnegação de si mesmo e o serviço dedicado aos irmãos e o exercício das virtudes.
O martírio e considerado desde os inícios da Igreja como a mais insigne doação de si mesmo e a prova radical do amor a Deus e ao próximo. Os que se consagram a Deus na Vida Religiosa, buscam viver com coração indiviso esse amor no martírio cotidiano de suas vaidades, prazeres e vontades, pela profissão dos conselhos evangélicos de pobreza, castidade e obediência. Também pais e mães, professores e mestres, médicos e enfermeiros, homens e mulheres simples e tantos outros que respondem com esmero à sua vocação no meio do mundo alcançam a santidade, a perfeição da vida cristã, dada como dom nos sacramentos da Iniciação Cristã (Batismo, Crisma e Eucaristia).
Aprendemos com o Concílio que a santidade não é algo extraordinário ou esquisito. Antes, é a foz natural de toda a vida cristã que se realiza em todos os estados de vida na convergência da graça sobrenatural com a vida cotidiana.
Um desafio relançado por Francisco
Em 19 de março de 2018, o Papa Francisco publicou uma Exortação Apostólica sobre o chamado à santidade no mundo atual, intitulada Gaudete et Exsultate (Alegrai-vos e exultai). Nela, o saudoso Papa Francisco retoma o chamado universal à santidade, feito pelo Concílio Vaticano II:
Para ser santo, não é necessário ser bispo, sacerdote, religiosa ou religioso. Muitas vezes somos tentados a pensar que a santidade esteja reservada apenas àqueles que têm possibilidade de se afastar das ocupações comuns, para dedicar muito tempo à oração. Não é assim. Todos somos chamados a ser santos, vivendo com amor e oferecendo o próprio testemunho nas ocupações de cada dia, onde cada um se encontra. És uma consagrada ou um consagrado? Sê santo, vivendo com alegria a tua doação. Estás casado? Sê santo, amando e cuidando do teu marido ou da tua esposa, como Cristo fez com a Igreja. És um trabalhador? Sê santo, cumprindo com honestidade e competência o teu trabalho ao serviço dos irmãos. És progenitor, avó ou avô? Sê santo, ensinando com paciência as crianças a seguirem Jesus. Estás investido em autoridade? Sê santo, lutando pelo bem comum e renunciando aos teus interesses pessoais (Gaudete et Exsultate, n. 14).
E sublinha a dimensão comunitária e popular desse chamado:
O Senhor, na história da salvação, salvou um povo. Não há identidade plena, sem pertença a um povo. Por isso, ninguém se salva sozinho, como indivíduo isolado, mas Deus atrai-nos tendo em conta a complexa rede de relações interpessoais que se estabelecem na comunidade humana: Deus quis entrar numa dinâmica popular, na dinâmica dum povo (Gaudete et Exsultate, n.5).
Ele afirma que “a santidade é o rosto mais belo da Igreja. Mas, mesmo fora da Igreja Católica e em áreas muito diferentes, o Espírito suscita ‘sinais da sua presença, que ajudam os próprios discípulos de Cristo’ (NMI, 56)” (Gaudete et Exsultate, n.9).
E alerta:
Uma pessoa não deve desanimar, quando contempla modelos de santidade que lhe parecem inatingíveis […]. Importante é que cada crente discirna o seu próprio caminho e traga à luz o melhor de si mesmo, quanto Deus colocou nele de muito pessoal (cf. 1 Cor 12, 7), e não se esgote procurando imitar algo que não foi pensado para ele. Todos estamos chamados a ser testemunhas, mas há muitas formas existenciais de testemunho. […] Pois a vida divina comunica-se ‘a uns duma maneira e a outros doutra’ (Gaudete et Exsultate, n. 11).
Francisco chama ainda a atenção do homem e da mulher modernos para dois inimigos sutis da santidade, que aparecem por aí disfarçados de virtude, de piedade, mas envenenam a vida cristã:
- O neognosticismo “supõe ‘uma fé fechada no subjetivismo, onde apenas interessa uma determinada experiência ou uma série de raciocínios e conhecimentos que supostamente confortam e iluminam, mas, em última instância, a pessoa fica enclausurada na imanência da sua própria razão ou dos seus sentimentos’ (Evangelii Gaudium, n. 94)” (Gaudete et Exsultate, n.36), despreza a carne, torna-se incapaz de compaixão pelo sofrimento alheio. E “ao desencarnar o mistério, preferem um Deus sem Cristo, um Cristo sem Igreja, uma Igreja sem povo” (Gaudete et Exsultate, n.37). “Ao longo da história da Igreja, ficou bem claro que aquilo que mede a perfeição das pessoas é o seu grau de caridade, e não a quantidade de dados e conhecimentos que possam acumular” (Gaudete et Exsultate, n.37). Estes novos gnósticos “absolutizam as suas teorias e obrigam os outros a submeter-se aos raciocínios que eles usam” (Gaudete et Exsultate, n.39). É o delírio da vaidade intelectual. Sobre essa tentação, São Francisco de Assis já advertiu Santo Antônio, ao permitir-lhe ensinar a Sagrada Teologia aos frades: “Apraz-me que interpreteis aos demais frades a sagrada teologia, contanto que este estudo não apague neles o espírito da santa oração e devoção” (Carta a frei Antônio, 2, em Fonti Francescane, 251);
- O neopelagianismo atribui o mesmo poder que os gnósticos atribuíam à inteligência à vontade humana, ao esforço pessoal, desmerecendo a ação da Graça. “Quem se conforma a esta mentalidade pelagiana, embora fale da graça de Deus com discursos adocicados, ‘no fundo, só confia nas suas próprias forças e sente-se superior aos outros por cumprir determinadas normas ou por ser irredutivelmente fiel a um certo estilo católico’ (Evangelii Gaudium, n.94)” (Gaudete et Exsultate, n.49). “No fundo, a falta dum reconhecimento sincero, pesaroso e orante dos nossos limites é que impede a graça de atuar melhor em nós, pois não lhe deixa espaço para provocar aquele bem possível que se integra num caminho sincero e real de crescimento” (Gaudete et Exsultate, n.50). “A Igreja ensinou repetidamente que não somos justificados pelas nossas obras ou pelos nossos esforços, mas pela graça do Senhor que toma a iniciativa” (Gaudete et Exsultate, n.52).
Por fim, um caminho
Ainda na Exortação Apostólica Gaudete et Exultate (63-94), Francisco aponta um caminho de santidade para os tempos atuais na contracorrente da sociedade: as Bem-aventuranças (Mt 5,3-12):
“Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu”. Ser pobre no coração: isto é santidade.
“Felizes os mansos, porque possuirão a terra”. Reagir com humilde mansidão: isto é santidade.
“Felizes os que choram, porque serão consolados”. Saber chorar com os outros: isto é santidade.
“Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados”. Buscar a justiça com fome e sede: isto é santidade.
“Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia”. Olhar e agir com misericórdia: isto é santidade.
“Felizes os puros de coração, porque verão a Deus”. Manter o coração limpo de tudo o que mancha o amor: isto é santidade.
“Felizes os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus”. Semear a paz ao nosso redor: isto é santidade.
“Felizes os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o Reino do Céu”. Abraçar diariamente o caminho do Evangelho mesmo que nos acarrete problemas: isto é santidade.
E a grande regra de comportamento:
Se andamos à procura da santidade que agrada a Deus, neste texto [Mt 25,31-46] encontramos precisamente uma regra de comportamento com base na qual seremos julgados: ‘Tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber, era peregrino e me acolhestes, estava nu e me vestistes, adoeci e estive na prisão e fostes me visitar’ (Mt 25, 35-36).
Para a santidade no mundo de hoje, não pode faltar, segundo o Papa Francisco, a capacidade de suportar as adversidades e sofrimentos, com paciência e mansidão, o bom humor e a ousadia nos pequenos gestos.
Aprendemos, portanto, que a santidade para o nosso tempo a que todos somos chamados não é esquisitice, não é radicalismo moral, devocional ou litúrgico, não é uma fé desencarnada ou simplesmente fruto da própria vontade e esforço. Mas, na contramão da cultura atual, é doação e entrega nas nossas próprias experiências e estados de vida, guiados pela Palavra e pela Graça de Deus que nos conduz nas nossas pequenas e grandes escolhas e atitudes, sempre a serviço do Reino inaugurado e desejado por Jesus Cristo, que começa aqui e agora, mas só será pleno na eternidade.







