“… Tinha muita devoção à Santíssima Trindade, e por isso fazia todos os dias oração às três Pessoas separadamente; fazendo também outra conjuntamente à Santíssima Trindade… E estando um dia a rezar… começou a elevar-se-lhe o pensamento, como se visse a Trindade em figura de três teclas, e isto com tantas lágrimas e soluços que não se podia conter. E indo naquela manhã numa procissão… com muito gozo e consolação, de tal modo que em toda a sua vida lhe ficou esta impressão de sentir grande devoção, ao fazer oração à Santíssima Trindade.” (Autobiografia, 28).
Escrito por Pe. Kleber Barberino Chevi, SJ
A experiência trinitária, em S. Inácio de Loyola, apresenta-se nas mais variadas expressões nos seus escritos e vivências que perpassaram sua vida. Uma das imagens que se serve Inácio, no início do seu itinerário em Manresa (Aut. 28) para expressar sua experiência, é a da figura das três teclas representativas da Trindade que embora sendo três quando acionadas conjuntamente emitem em uníssono a harmoniosa unidade na diferença que compõe um acorde.
A imagem plástica e figurativa de um acorde nos remete ao modo como Inácio compreende a experiência Trinitária ao interno da tradição cristã própria da devoção espanhola. De algum modo essa representação o acompanhará em seu percurso espiritual como uma impressão que o levará a grandes consolações quando em oração à Trindade. As suas muitas consolações, confirmações, lágrimas e soluços o levarão ao mais alto estágio da maturidade espiritual quando finalmente compreende a quem, como e com quem é chamado a servir mediante experiências sublimes e inefáveis saboreadas em La Storta na entrada de Roma (Aut. 96).
O mistério trinitário parece ser acolhido e compreendido por Inácio desde Manresa, na sua mais primordial realidade como uma poderosa tensão entre a plenitude pessoal das três Pessoas Divinas e sua eterna unidade. O Deus trino e uno o envolveu de tal modo que passou a ser o dinamismo fundamental de sua vida que tudo integrava, harmonizava e unificava. Esse movimento dinâmico trinitário que lhe era concedido mediante um elevar-se do pensamento alcançou uma luminosidade maior na Ilustração do Cardoner (Aut. 29-30).
A luminosidade da Trindade em seu movimento descendente e ascendente parecia tudo clarificar e ganhar sentido. É a partir dessa claridade que tudo passará a se inscrever e se integrar. Inácio passará a “ver novas todas as coisas”, isto é: as outras coisas e os mistérios da fé e da ciência, “as coisas espirituais”, o Cristo como enviado do Pai e Verbo criador e redentor. O efeito dessa experiência espiritual profunda lhe possibilitará não uma simples conversão moral, mas o conduzirá a uma mudança totalizante e radical da sua vida. Envolto nessa luz que tudo transformava, Inácio verá toda realidade brotando do coração de Deus, sendo atravessada por essa luminosidade no seu percurso histórico e tendo o seu cume no seio da Trindade.
Inácio pôde vivenciar a união com Deus Trindade como oferta do dom porque se deixou alcançar e respondeu generosamente despojando-se sucessiva e radicalmente nos âmbitos materiais, psicológicos, existenciais e espirituais. O itinerário por onde foi sendo conduzido o levou ao despojamento kenótico segundo a pedagogia do Espírito.
O Espírito foi configurando Inácio sempre mais à pobreza, à humilhação de Cristo levando-o a se posicionar diante do mundo dilacerado, dividido pelo pecado e cheio de conflitos como aquele que serve, integra e age colaborando nos processos de reconciliação. É nessa condição de servidor como Cristo que Inácio encontrará a paz, a confirmação definitiva do caminho empreendido. Desse modo, a experiência de Deus do peregrino caminhará par-a-par com o seu agir apostólico.
Ao dinamismo amoroso trinitário, como a um acorde em uníssono, Inácio encontrará o sentido maior de sua vida e serviço deixando-se conduzir pelo Espírito que o vai configurando a Cristo. Esse amor de identificação a Cristo o coloca como companheiro e colaborador na reintegração salvífica expressa no abraço terno do Pai que se derrama na vida e entrega definitiva do seu Filho.
“Como Inácio, dobro meus joelhos para agradecer-Te esta vocação trinitária tão sublime da Companhia, como também São Paulo dobrava os joelhos diante do Pai, suplicando-Te que concedas a toda a Companhia que ‘arraigada e fundada no amor possa compreender com todos os Santos, qual seja a largura, o comprimento, a altura e a profundidade… e me vá cumulando até a total plenitude de Ti, Trindade Santíssima’. Dá-me Teu Espírito que sonda tudo até as profundidades de Deus.” (Extrato da oração de Pe. Pedro Arrupe, SJ).
Textos bíblicos: Ef 3, 14-21 e Jo 14, 1–31.
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