“(…) uma vez, seus olhos se abriram um pouco, e começou a maravilhar-se dessa diversidade [de sentimentos] e a refletir sobre ela. (…) tanto seu irmão como todas as outras pessoas da casa foram conhecendo a mudança que se operava no íntimo dele”. (Autobiografia, n. 8-10)
(Escrito por Eduardo Carvalho da Silva, SJ)
Como aprendemos a ler? Relembrar tal acontecimento de nossas vidas pode nos deixar encantados diante dessa passagem extraordinária que nos colocou em contato com um novo mundo. Esta capacidade começa de forma simples: compreender o que são as letras, as sílabas, os sons e, por fim, as palavras. Pudemos ler, compreender e, depois, interpretar; fazendo com que aquela palavra passasse por nós e fosse devolvida ao mundo de uma maneira única, singular, pessoal. A aventura de ler nosso mundo interior, agitado por muitos movimentos, não possibilitaria também oferecer algo novo ao mundo externo? Seria possível aprender a lê-lo depois dos 20, 30, 40 anos?
O tempo necessário de aprendizado sobre nosso mundo interior situa-se em outro nível. Não é somente uma quantidade mensurada, fracionada como simples sucessão de instantes. É um tempo da irrupção do eterno em nós, da “infinitude” de Deus na nossa condição humana limitada e inacabada. Toca-nos em muitos níveis de profundidade. Quanto mais aprofundamos nas raízes dos nossos movimentos internos, mais próximos dos nossos desejos e medos chegamos. E em cada um desses lugares, encontramos um olhar que nos salva. Entretanto, esse caminho começa por uma percepção: a distinção de pensamentos e os sentimentos que eles nos causam e para onde eles nos levam.
Distinção de pensamentos e sentimentos
Inácio de Loyola experimentou essa distinção quando estava se recuperando de um grave ferimento. Percebeu que alguns pensamentos o deixavam alegre, mas logo em seguida, não se sentia mais assim. Do mesmo modo, notou que outros pensamentos o deixavam alegre por mais tempo. Ora, havia uma alegria mais verdadeira, pois era mais permanente. O que isso significaria? Seu coração se abriu para uma novidade: a descoberta de seu mundo interior. Contudo a percepção de que existem em nós pensamentos, sentimentos, e desejos que nos movem para distintas finalidades não é tão imediata. Requer-se tempo para essa nova leitura ou, como é mais comum dizer, para essa nova escuta. Os sentidos internos se abrem para experimentar cores, vozes, cheiros e sabores de um modo novo.
Situações diferentes, que geram mesmos sentimentos, são contrastados com a profundidade na qual cada um deles surge em nós. Sentimentos por si só podem nos mover, mas para onde? É preciso senti-los, saboreá-los, mas também refletir sobre eles, envolvê-los de palavra, tentar expressá-los tal como são, mesmo com nossa limitação de linguagem. Começamos por onde sabemos: isso é bom, isso me faz bem. Ou então: isso não é bom, isso não me faz bem. A cada espaço novo conquistado, mergulhamos mais em nós mesmos e vamos encontrando nuances que são importantes: isso é bom, mas não tanto como aquilo que parece ser melhor. Aprofundamos em nós, ganhamos mais qualidade na elaboração, na interpretação, na expressão.
Nosso mundo interior vai sendo conhecido e a direção dos nossos esforços vai sendo convertida, transformada. Assim, a comunicação de Deus que experimentamos internamente vai se revelando também, pouco a pouco, a nossos irmãos e irmãs que confirmam a mudança que acontece em nós. O modo como enxergamos, escutamos, sentimos a realidade passa a ser diferente, bem como o modo como somos enxergados, escutados, sentidos pelos outros. E, neste aprendizado, somos movidos continuamente para o mais profundo de nós e devolvidos na nossa mais irrepetível novidade aos outros.
Texto Bíblico Fl 3,1-14
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