Lideranças juvenis: construindo um caminho sinodal entre escombros 

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Giovani do Carmo Junior

Em uma de minhas experiências pastorais em uma comunidade encontrei com um grupo de coordenadores muito animado e encorajado na missão. Era uma comunidade em um grande centro urbano brasileiro que vivia a dificuldade da ausência de lideranças juvenis capazes de animar e congregar os jovens da Paróquia. Após uma das reuniões entre os coordenadores das pastorais foi pego de supresa por uma conversa informal no corredor. Uma das coordenações partilhou comigo: “Estou tendo muito problema, e o grupo é bom. Não consigo coordenar, sabe? Às vezes cada um quer fazer do seu jeito, não respeita… se todos compreendessem que aqui eu sou a gerente e existe uma hierarquia, tudo iria ficar mais fácil”. 

Podem ser feitas muitas análises desse relato. Quero chamar atenção para um fator inegável: somos seres de significação. Aprendemos ao longo da vida a simbolizar e significar as relações consigo, com os outros e com Deus a partir das mediações que dispomos. Quero levantar algumas perguntas em vista da formação de lideranças juvenis:  

Por que “cada um fazer do seu jeito” é um obstáculo? Por que o modelo do gerente resolveria o problema da coordenação? Por que essa pessoa escolhe o modelo gerenciar pessoas para responder aos problemas da sua realidade? Por que a hierarquiazação da relação coordenador/coordenados é a solução? O líder de jovens ou de um grupo de jovens é um gestor de pessoas sustentado que tem poder ilimitado sobre a vida dos outros? O líder manda e os outros obedecem? 

Se aprendemos ao longo da vida a dar significado ao vivido, então quais são as formas através das quais damos significado ao mundo? Os e as jovens aprendem, atuam e produzem modos de significação do seu existir (DAYRELL, Juarez. O jovem como sujeito social. p. 43.). O aprendizado dialógico e ativo ocorre em constante contato com técnicas e saberes sobre liderança pautados em esquemas governo gestados historiamente em determinados contextos socioculturais (Dignitas Infinita, n. 26).  

Perfeitos e honrados 

O Batismo é o elemento fundante da vida cristã em comunidade. Os discipulos de Jesus são “regenerados não pela força de germe corruptível mas incorruptível por meio da Palavra de Deus vivo, não pela virtude da carne, mas pela água e pelo Espírito Santo”. Um povo de sacerdotes, profetas e reis – o povo de Deus – é gerado para a nova e terna aliança pelas águas do batismo (Lumen Gentium, n. 9). Neste horizonte eclesial em que todos são chamados ao seguimento de Cristo com igual dignidade de Filhos de Deus, ser líder jovem de uma comunidade não consiste em submter o outro à sua vontade ou determinar a vida segundo suas vontades, mas colcocar-se à serviço lavando o pé ferido dos irmãos e do mundo pelas angústias, dores e desesperanças (Cf. Jo 13).  

Todavia, esse modelo eclesial sofreu modificações na sociedade da honra. A sociedade da honra foi uma reação da comunidade cristã católica no Ocidente ao movimento protestante de Martin Lutero chamado de Reforma Protestante. A Igreja buscando salvaguardar a unidade, engatilhou a Contra Reforma. Este estilo moderno de se pensar a organização comunitária se baseou no modelo da burocratização, clericalização e centralização da liderança e das instâncias decisórias. Em uma comunidade eclesial em que ser líder consiste em ser autoridade hierárquica única capaz de falar, ordenar e fazer as coisas é mantida em seu pedestal por uma diferença entre quem manda e quem obedece (Grillo, Andrea. Fazer teologia hoje: a transição da sociedade da honra para a sociedade da dignidade).  

Parece possível dizer que o clericalismo, um dos modelos de liderança que são apresentados e abraçados por jovens nas comunidades, é um produto dessa forma de conceber a vida em comunidade. Esse modelo permeia o modo de se relacionar com Deus, com o outro e com o mundo. Nesse caso, a sociedade de perfeitos não se relaciona com ninguém, porque pretende somente ser objeto de culto e honra por parte dos serviçais. Em geral, em ambientes eclesiais com essa organização, a vida em comunidades dos jovens é sufocada. São chamados de rebeldes demais e são vistos somente pelo prisma da utilidade: força de trabalho nas festas da comunidade. 

Em caso de confronto, o embate pode ser tão grande que os jovens terminam por se desvincularem da comunidade, ou são expulsos por não se adaptarem às relações de autoridade muito verticais. Ou os que permanecem enfrentam muitas lutas até se acomodarem na organização e não mais serem colocados sob suspeita. Isso por vezes acontece depois de ter sobrevivido a muitas discussões. O lugar de destaque é conquistado depois de ter sobrevivido às lutas com as lideranças adultas. Ou são totalmente absorvidos de maneira subserviente e silenciada. Estes passam a exercer a servidão voluntária às autoridades de honra. 

Gerentes de recursos humanos 

Há um outro modelo eclesial fruto das mudanças na vida em comunidade na atualidade. Os jovens e suas lideranças vivem imersos em um caldo cultural por muito mais tempo do que a vida em comunidade. A comunidade eclesial é uma realidade teológica vivida na história. Em âmbito histórico, se organiza conforme os elementos socioculturais disponíveis em seu contexto de tal maneira que assume formas organizativas como outras instituições e grupos sociais.  Devido esse fator sociocultural, é uma organização comunitária porosa que absorve e exporta elementos para a vida social, quer queira ou quer não. É um movimento inevitável de interação pertinente às dinâmicas sociais.  

“Hoje, não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social”(Laudato Si, n.49). A mudança climática atingirá o direito de todos à água potável, à alimentação e à segurança, mas ela chegará primeiro aos mais pobres. Em meio a esse cenário está se estabelecendo progressivamente um discurso cada vez mais forte. O princípio social e comunitário do “salve-se quem puder” está se traduzindo rapidamente no lema “todos contra todos”. Isto está na base da terceira guerra mundial que vivemos aos pedaços (Fratelli Tutti, n.36). 

“Pergunto-me se somos capazes de reconhecer que estas realidades destrutivas correspondem a um sistema que se tornou global” (PAPA FRANCISCO. Discurso do Santo Padre no II Encontro Mundial dos Movimentos Populares). A globalização é um fenômeno que consiste nesse entrelaçamento de relações segundo sua profunda aspiração à unidade. As redes de comunicação deram lugar a uma extensão enorme de contatos que não refletiu no aumento qualitativamente proporcional de relações. Ter muitas conexões não significa ter mais relações (HAN, Byung-Chul. O desaparecimento dos rituais: uma topologia do presente). A comunidade eclesial se converte em uma rede de network. Não preza pelo valor singularar da pluralidade e das diferenças. A unidade, nesse caso, pode se converter rapidamente em uniformidade e pensamento único. 

O fenômeno da globalização “comporta também o risco dos grandes monopólios e de converter o lucro em valor supremo” (BENTO XVI. Discurso do Papa Bento XVI: Sessão inaugural dos trabalhos da V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe). A sua corrupção em uma globalização da indiferença cultuadora do capital e do lucro é sintomática de uma crise antropológica e ética. “O ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora” (Evangelii Gaudium, n.53). A dinâmica da produtividade e do descarte torna o mérito e a eficácia valores absolutos das relações humanas (Documento de Aparecida, n.61). Dito de outro modo, quem trabalha, tem valor. Quem não se engaja na festa do padroeiro não tem valor.  

A vida em comunidade passa a ser submetida à economia. Mas, a vida em comunidade não deve ser submetida ao “lucro do caixa”. E a economia da comunidade não deve estar a serviço da eficiência técnológica (Laudato si, n. 189). Nessa configuração, o aumento do lucro passa a definir o valor do ser humano e o valor da vida em comunidade. O valor da vida passa a ser o que ela é capaz de produzir.  

O modelo de vida em comunidade que está por detrás é a soma de interesses econômicos individuais que se juntam num mesmo espaço físico ou digital em uma relação de concorrência de uns contra os outros (Doutrina Social da Igreja, n.91). A celebração eucarística e os momentos em comunidade passam a ser palco para as disputas concorrências para ver quem aparece mais ou quem ganha mais seguidores depois de cantar o salmo. A comunidade ou grupo de jovens deixa de ser um espaço de encontro de pessoas para ser uma soma de indivíduos movida por querer estar no hype

Implosão da vida em comunidade 

Uma comunidade de sócios e seguidores se forma em torno de um empreendimento cuja única responsabilidade sobre o sucesso ou o insucesso provém do próprio esforço do indivíduo. A comunidade não tem nenhuma responsabilidade para com os seus membros. Não existe essa coisa de comunidade. “O que existe são homens e mulheres, indivíduos, e famílias” agrupados como uma soma de pessoas (THATCHER, Margareth. “Essa coisa de sociedade não existe).  

Esses elementos nos possibilitam analisar a crise dos grupos e das lideranças juvenis vividas por comunidades eclesiais atualmente que não veem mais a potência dos grupos de jovens que existiam em seu interior nas décadas de 70, 80 e 90 do século XX e na primeira década do século XXI. O líder juvenil emerge em um contexto de comunidade, isto é, de uma experiência coletiva. As pessoas passam a maior parte do seu tempo embebidas nesse caldo cultural da sociedade da honra e da sociedade do desempenho neoliberal lutando para sobreviver no dia a dia (Dilexit nos, n. 218). A sua forma de se relacionar com Deus, com os outros e com o mundo é simbolizada por essas concepções que propõem modelos comunitários sem comunidade. Sua vida é atravessada por processos de subjetivação calcados nesses dispositivos provocadores de desmobilização da vida coletiva (FISHER, Mark. Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? p. 18).  

Como vamos colobarar para o surgimento de lideranças juvenis, se nem mesmo nos damos conta da destruição da experiência da vida em comunidade, da vida em pequenas comunidades que são os grupos juvenis em ambiente eclesial? Convido a olharmos esses problemas do cotidiano a partir de uma perspectiva mais ampla onde essas pequenas crises também tem suas raízes. O Sínodo sobre a comunhão, participação, missão reconheceu em seu Documento Final que vivemos a desilusão dos modelos tradicionais de governação. Vemos emergir diante de nossos olhos o aumento das tendências autocráticas e ditatoriais e a tentação de resolvermos os conflitos através da força ao invés de optarmos pelo diálogo. Afinal, a Palavra é o que está na origem da comunidade. 

O caminho da sinodalidade 

Nesse sentido, os espaços e momentos de formação de lideranças juvenis necessita gerar relações dialogais, colaborativas, horizontais, verticais e abertas à pluralidade de pessoas e de mundos. A vida é afeto, movimento, vivacidade, escuta, diálogo, partilha e desafio de caminhar em conjunto. Já as tendências de morte da vida coletiva se expressam na rigidez, na hierarquização hermética, no fechamento ao diferente e na violência física e simbólica como mediação de conflitos. Assim, podemos e devemos pensar em práticas de formação de lideranças juvenis sinodais como resposta profeticamente crítica face aos modelos dominantes da honra e da gerência que colonizam a experiência em comunidade e o exercício da liderança dos jovens (Documento Final, n. 47) 

Nesse discussão o péndulo se orienta em geral segundo dois pólos ao mesmo tempo opostos e tênues. Se em um lado, como procurei mostrar, está o isolamento social, o indvidualismo e a hierarquização burocrática e hermética, no outro lado “está um comunitarismo social exagerado que sufoca as pessoas e não lhes permite serem sujeitos do seu próprio desenvolvimento” (Documento Final, n. 48). O que a comunidade dos amigos de Jesus propõe é um laço comunitário a partir dos mais pobres. Constituir uma comunidade a partir dos descartáveis, dos miseráveis e das periferias existenciais. A comunidade e, por conseguinte, suas lideranças juvenis se estruturam a partir das dores, dos sofrimentos e das pobrezas existenciais dos jovens de sua realidade. Um laço onde tudo e todos estão interligados e interdependentes. 

O que os jovens envolvidos nas lutas socioambientais pela trasnsição energética, contra a fome, contra o analfabestismo, contra o racismo e a xenofobia, contra as desigualdades sociais e tantas outras lutas exprimem é justamente a esperança. As juventudes está envolvida ativamente na construção de uma comunidade constituída para o bem de todos, aberta a todos e onde todos tem dignidade e salvaguarda. Os jovens tem demonstrado possuir maior sensibilidade com as crises atuais e com as pessoas mais afetadas por elas. Uma comunidade reunida sob um princípio de unidade que garante a pluralidade solidária. De fato, “precisamos de uma comunidade que nos apoie, que nos auxilie e dentro da qual nos ajudemos mutuamente a olhar em frente. Como é importante sonhar juntos! […] é juntos que se constroem os sonhos” (PAPA FRANCISCO, Discurso no encontro ecumênico e inter-religioso com os jovens). 

“O problema é que não dispomos ainda da cultura necessária para enfrentar esta crise” da vida em comunidade e, por conseguinte, da liderança. Quero te convidar a refletir sobre os modelos de liderança e comunidade que povoam os imaginários e os projetos de evangelização e formação das juventudes em sua realidade. Os líderes emergem e se inscrevem em um tecido humano, social, político, histórico, geográfico e institucional (CARDOZO, Carlos Eduardo. Jovens construindo juventudes: reflexões sobre o contemporâneo. p. 51). Precisamos, como povo de Deus, enfrentar a “necessidade de construir lideranças que tracem caminhos, procurando dar resposta às necessidades das gerações atuais, todos incluídos, sem prejudicar as gerações futuras” (Laudato Si, n. 53). Por isso, faz-se tão necessário o trabalho de coloborar e ajudar na formação de líderes jovens ousados, audaciosos, corajosos, sonhadores, firmes, solidários e, sobretudo, enraizados no Evangelho e no tempo do agora. 

Referências 

BENTO XVI. Discurso do Papa Bento XVI: Sessão inaugural dos trabalhos da V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe. Disponível em < https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/speeches/2007/may/documents/hf_ben-xvi_spe_20070513_conference-aparecida.html>. Acesso em: 15 mai. 2025. 

Compêndio de Doutrina Social da Igreja. Disponível em: < https://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/justpeace/documents/rc_pc_justpeace_doc_20060526_compendio-dott-soc_po.html>. Acesso em 15 de mai. 2025. 

CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Dogmática Lumen Gentium. In: _____. Compêndio Vaticano II. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2000.  

CARDOZO, Carlos Eduardo. Jovens construindo juventudes: reflexões sobre o contemporâneo. 3.ed. São Paulo: Editora Delicatta, 2019.  

CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO E CARIBENHO. Documento de Aparecida: Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. Brasília: CNBB; Paulinas: Paulus, 2007. 

DAYRELL, Juarez. O jovem como sujeito social. Revista Brasileira de Educação. N.24, set./dez. 2003. 

DICASTÉRIO PARA DOUTRINA DA FÉ. Dignitas Infinita (2 de abril de 2024). Disponível em: <https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_ddf_doc_20240402_dignitas-infinita_po.html>. Acesso em 15 de mai. 2025. 

FISHER, Mark. Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? São Paulo: Autonomia Literária, 2020. 

Grillo, Andrea. Fazer teologia hoje: a transição da sociedade da honra para a sociedade da dignidade. In: Instituto Humanitas UNISINOS. Ciclo de estudos: Mudança de época e o fazer teológico hoje. Desafios e perspectivas. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=B1DOYWC506Y>. Acesso em 15 mai. 2025 

HAN, Byung-Chul. O desaparecimento dos rituais: uma topologia do presente. Trad. Gabriel Salvi Philipson. Petrópolis: Vozes, 2021. 

PAPA FRANCISCO. Discurso do Santo Padre no II Encontro Mundial dos Movimentos Populares (9 de julho de 2015). Disponível em: < https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/july/documents/papa-francesco_20150709_bolivia-movimenti-popolari.html>. Acesso em 15 mai. 2025. 

PAPA FRANCISCO. Discurso no encontro ecumênico e inter-religioso com os jovens (Skopje – Macedónia do Norte 7 de maio de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 14/V/2019). 

FRANCISCO. Evangelii Gaudium. São Paulo: Paulinas, 2013.  

PAPA FRANCISCO. Fratelli Tutti. São Paulo: Paulus, 2020.  

PAPA FRANCISCO. Laudato Si. 2.ed. São Paulo: Paulus, 2019.  

PAPA FRANCISCO; XVI ASSEMBLEIA GERAL ORDINÁRIA DO SÍNODO DOS BISPOS Documento Final: Para uma Igreja sinodal: comunhão, participação, missão. Disponível em: < https://www.synod.va/content/dam/synod/news/2024-10-26_final-document/POR—Documento-finale.pdf>. Acesso em 15 mai. 2025. 

THATCHER, Margareth apud MAGNOLI, Demétrio. ‘Essa coisa de sociedade não existe’. Disponível em: < https://oglobo.globo.com/opiniao/essa-coisa-de-sociedade-nao-existe-8080595.>. Acesso em 15 mai. 2025. 

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