“Mas… começou a ter grandes variações na sua alma, encontrando-se às vezes tão desanimado que não sentia gosto nem em rezar, nem em ouvir missa, nem em qualquer outra oração que fizesse” (Autobiografia 21)
(Escrito por E. Wesley Heleno de Oliveira, SJ)
Em sua Autobiografia Santo Inácio narra os percalços de sua vida espiritual. Experimentou um marcante turbilhão de moções durante sua estadia no pequeno povoado de Manresa. Inácio sentiu-se tão desanimado que mal sentia vontade de rezar e em nada encontrava gosto. Uma desolação terrível abateu sobre sua alma. Ele vivenciou a noite escura da alma, e inclusive reconheceu que “perdeu totalmente a ânsia de buscar pessoas espirituais” (Aut. 37).
Inácio experienciou intensa luta interior. Estava obcecado pela prática da penitência severa contra o corpo, pouco descanso, muito pouco alimento. Debatia-se numa luta com escrúpulos que o desassossegava a ponto de o impedir se sentir perdoado pela confissão realizada. Tornava a confessar os pecados já confessados, pois a sua consciência ainda os acusava. No extremo do rigorismo consigo mesmo, ele sentiu-se tentado a dar cabo da própria existência. Inácio, no auge da aflição, gritou ao Senhor que o ajudasse (Aut. 24).
Não é incomum que nós tenhamos vivenciado semelhante sensação de vazio espiritual. Esta experiência é uma dura provação espiritual. A ausência de gosto pela escuta de coisas espirituais é sintomática do estado de desolação. Essa eventual condição interior intriga qualquer pessoa que se esforce por cultivar a vida espiritual e perguntas irrompem do meio de seu espanto: como pode um homem santo como Inácio, perder o sabor da oração e até imaginar-se perdido no relacionamento com Deus? É um silêncio de Deus? Algumas delas se voltam para nós mesmos: o que se passa? Estou rezando da maneira certa? Que posso fazer para reconectar-me com Deus? O ponto-chave aqui é que Deus não nos retira de nossa humanidade para nos santificar porque é essa própria vida que temos e somos que deve ser curada e depois salva. A abertura à mudança e a atuação da graça em nós é que nos possibilita ver novas todas as coisas em Cristo.
Inácio, guiado pelo discernimento, reconheceu para si mesmo a necessidade do justo cuidado com o corpo, o alimento necessário, o repouso restaurador. Ele percebeu, por experiência vivida, que “com o corpo são podereis fazer muito; com o corpo doente, não sei que podereis fazer” atentando-se contra os excessos de rigor e descobrindo o equilíbrio da caridade (Aut. 26, nota 19).
Na jornada espiritual de Inácio, enxergamos dois movimentos que se entrecruzam: a ação de um homem apaixonado e o agir divino (Aut. 32). Ao ler em voz alta sua Autobiografia, se atentos, podemos ouvir uma polifonia de vozes, a humana e a divina (Aut. 27-30). A vida espiritual, mesmo sendo uma dimensão própria, se exprime por meio de nossas atividades psíquicas e corporais. Inácio sofreu até ser capaz discernir que remorso ou sentimento de culpa não é o mesmo que a consciência de pecado (EE 317; 346). O sentimento de culpa deprime a pessoa porque a torna prisioneira do seu passado de pecados e a enreda numa escrupulosidade alimentada pelo narcisismo de se querer perfeita para, só então, ser amada por Deus. A consciência de pecado, pelo contrário, leva a pessoa a reconhecer-se pecadora diante de Deus e de outrem numa relação de alteridade que a solicita sair do fechamento de si para exercitar o perdão e reconciliação. Começamos a viver uma vida genuinamente cristã direcionada à busca da santidade que tolera falhas porque não somos perfeitos.
A apatia para buscar e escutar coisas espirituais é sinal de prostração da desolação espiritual. Pode ser vencida a exemplo de Santo Inácio, nos permitindo moldar pela ação do Espírito não só no enlevo dos afetos devocionais, mas inclusive pelo exercício da inteligência, tendo Deus como mestre-escola que nos ensina a interpretar as moções interiores e referenciar a vida espiritual pela consolação espiritual (EE 316).
A vida espiritual é experiência dinâmica que nos move interna e externamente. Ao nos relacionar com Deus é mobilizado nosso corpo, instigada nossa mente e inflamado nosso espírito para O amar e servir aos demais.
Texto bíblico: Rm 8, 31-39
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