O compromisso diante do pluralismo religioso 

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Pe. Edson Tomé

Neste último passo de nossas reflexões neste mês, será apresentado o discernimento como desafio para o cristão e, em seguida, as diretrizes pedagógicas que favorecem a articulação da identidade cristã no interior de uma comunidade plural. Assim, será de grande importância analisar a atitude das juventudes cristãs inseridas na práxis eclesial: uma práxis libertadora em um contexto histórico que deve acompanhar inseparavelmente o discernimento e a atitude marcada por uma consciência crítica, refletida e aberta ao encontro com o outro. Iniciemos pelo discernimento.  

O discernimento é a categoria escolhida para iluminar a dimensão pedagógica da nossa investigação. Ele se refere à prática propriamente humana de refletir com responsabilidade sobre as realidades próprias da vida. Nas palavras de Vives: 

O ser humano é um ser de discernimento devido à necessidade de buscar o bem e distingui-lo do mal neste mundo, à necessidade de descobrir ainda mais o bem do que o mal, de distinguir entre o bom e o menos bom, a partir de indícios que nos são dados pela própria realidade de fora e que não são simplesmente escolhidos por cada um de nós (Vives, Josep. Principio y Fundamento del discernimiento Cristiano, s/p). 

Portanto, viver agindo de maneira humana e responsável é viver discernindo de uma ou outra forma, uma vez que o discernimento é uma tarefa permanente de todo homem em toda situação, entendido como uma maneira de “distinguir uma coisa de outra, assinalando a diferença que há entre elas em relação a um princípio ou parâmetro” (Randle, Guillermo. El discernimiento como ayuda espiritual y sicológica: Teoría y práctica. p. 25). 

Se tomarmos a mistagogia dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio, discernir é uma arte. A arte de aprender a compreender nos sinais da nossa vida como Deus se comunica para nos salvar. Nesse sentido, “o discernimento é um processo no qual o crente cristão busca compreender a verdadeira trama do desígnio salvífico e as decisões dos indivíduos na história” (Libanio, J. B. Discernimiento espiritual. Reflexiones teológico-espiritual. p.26). Assim, o discernimento é um processo que acontece em três níveis: perceber, reconhecer e decidir. Perceber com a finalidade de aumentar a capacidade de atenção do crente, reconhecer o sentido das coisas que ocorrem no interior da pessoa para interpretar e julgar o seu significado em ordem à diversidade. E, por fim, decidir, que é consequência de todo discernimento.  

A importância do discernimento quanto ao tema do pluralismo religioso demonstra-se, em primeiro lugar, pela necessidade de ver a situação atual com a maior clareza possível, sem se fechar nos muros institucionais e em segundo lugar, pela abertura ao diálogo com o que este momento traz de positivo. Isso exige certa flexibilidade para saber mudar e adaptar-se à nova realidade. 

O teólogo Karl Rahner (Rahner, Karl. Lo dinámico en la Iglesia. p.100) escreve que “é característica do cristão saber viver em permanente discernimento, porque se parte da convicção de que Deus quer e pode comunicar-se pessoalmente, não apenas por meio de mediações gerais expressas na lei natural ou na lei positiva”. Ressalte-se que o discernimento não se realiza de uma vez por todas. A maneira concreta de seguir vivendo dependerá da situação em que se encontra cada pessoa 

Aqui poderíamos nos questionar: Por que é necessário propor ao cristão este tema do discernimento? Porque, a partir dele, formula-se uma questão central na vida cristã: onde podem os crentes cristãos encontrar o critério para discernir o pluralismo religioso? 

De acordo com a V Conferência Episcopal Latino-Americana de Aparecida, “os desafios que enfrentamos hoje na América Latina e no mundo têm uma característica peculiar. Eles não apenas afetam nossos povos de maneira semelhante, mas, para serem enfrentados, requerem uma compreensão global e uma ação conjunta” (n. 521). Dessa forma, os tempos de mudança são também momentos privilegiados para depurar, refletir, dialogar e oferecer novas respostas aos desafios. 

Nesse sentido, “o pluralismo, para além da simples pluralidade, é no fundo um novo paradigma, ou seja, uma nova forma de compreender que o pluralismo provém do inescrutável desígnio de Deus: é vontade do próprio Deus” (Vigil, José María. Pluralismo cultural y religioso. El Cristianismo en América Latina y el Caribe. Tejiendo Redes de Vida y Esperanza. p.232). Esse fenômeno mostra uma série de características e valores novos. Trata-se de uma nova forma de ser e de se expressar como cristão crente, que exige uma mudança da imagem de Deus e da religião única. Nas palavras de Knitter (Introducción a las teologías de las religiones. p. 37): 

Hoje a presença, a força e a riqueza das outras tradições religiosas têm estado vigorosamente na consciência cristã. Nosso planeta, intercomunicado e interdependente, nos tornou conscientes — de forma mais clara, mas também mais dolorosa do que nunca — das múltiplas religiões e das múltiplas e diferentes respostas últimas. 

Nesse sentido, o tema da teologia das religiões, do diálogo inter-religioso e do ecumenismo reclama um diálogo interfé sobre as demais religiões. Isso como parte de um processo mais amplo e muito mais profundo, que vai além de um simples avanço teórico-teológico ou de uma etapa de renovação teológica e religiosa. Trata-se de um novo estado de consciência do seu ser e de sua missão como cristão em nossos dias. Isso implica uma mudança radical de atitude diante da pluralidade das religiões: uma atitude positiva, de respeito, que nelas reconhece uma obra de Deus

Um desafio importante é compreender que a liberdade religiosa não se refere apenas à expressão externa dos atos internos da religiosidade ou da dimensão cultual da fé religiosa, mas à promoção de atividades e instituições em que os indivíduos se unam com o propósito de ordenar suas próprias vidas de acordo com seus princípios religiosos, aplicando o valor especial de suas doutrinas no que se refere à organização da sociedade e à inspiração da atividade humana. Nesse sentido, é importante sublinhar que a liberdade religiosa não deve depender dos conteúdos das diversas e possíveis opções religiosas que possam ser professadas. É a pessoa que é sujeito desse direito, não a verdade ou o erro dos conteúdos de sua crença. Esse é um passo importante que marca a visão cristã sobre a liberdade religiosa no Vaticano II. Assim, como cristãos, sabemos que o pluralismo religioso constitui esse desafio fundamental para a autoconsciência cristã, que se vê interpelada, questionada e desconcertada pela diversidade e vitalidade de outras religiões.  

Nesse sentido, uma nova compreensão das outras religiões e do divino implica também uma nova compreensão do cristianismo e do papel que desempenham as múltiplas religiões no plano divino. Diante dessa realidade, exige-se o discernimento. Esse discernimento é requerido, em primeiro lugar, pela força das circunstâncias históricas. Estas indicam que a pluralidade das religiões da humanidade deve ser levada em consideração, pois possui um significado positivo para cada caminho religioso.  

O discernimento cristão se fundamenta no reconhecimento de Jesus Cristo como “único mediador entre Deus e os homens”. Isso significa que os cristãos devem reconhecer, na pessoa de Cristo, alguém que ocupa um lugar único na história da Salvação, porque Ele não é apenas uma manifestação do Absoluto, mas o “Verbo feito carne”, o “Filho único de Deus”, aquele que é, para toda a humanidade, o caminho da salvação. Tal convicção, sem dúvida, não deve ser imposta de forma alguma a outros crentes; mas o cristão, em relação a si mesmo, não pode renunciar a ela, sob pena de perder de vista as raízes de sua própria fé. Porém, sabemos: se apresenta a necessidade de situar o caminho cristão ao lado de outros caminhos espirituais e Jesus junto a outros, também considerados por seus povos como portadores de graça e salvação

Assim, levar em conta as diferentes formas de ser religioso e a ampla gama de possibilidades de ser cristão hoje implica considerar as diferentes formas que podem assumir, na prática, as relações dos cristãos com outros crentes. Trata-se de reconhecer que todas as religiões devem hoje colocar em prática os direitos fundamentais do ser humano.  

Diante do exposto, resta perguntar ao crente cristão: que atitude assumir diante de tudo o que acontece? Que elementos devem caracterizar suas relações com os outros crentes? Dentro da proposta pedagógica para discernir teologicamente o pluralismo religioso, apresentam-se três diretrizes pedagógicas que contribuem para a articulação da identidade cristã no interior da comunidade plural, a saber: o reconhecimento, o diálogo e a comunhão.  

O reconhecimento orienta a assumir toda a singularidade que possui a nossa fé cristã, sem relativizá-la, mas também sem excluir outras expressões simbólicas das mesmas esperanças humanas. Num primeiro nível, implica o reconhecimento e respeito de todos como seres humanos distintos e, num segundo nível, trata-se de passar do reconhecimento humano ao reconhecimento da experiência de fé do outro, tal como se dá em um encontro com o Sagrado.  Uma vez que “todas as tradições religiosas nos dão um significado fundamental: a presença, no homem, de algo que transcende o humano, de tal forma que é algo radicalmente Outro. Esse Outro, atestado por todas as religiões, é o que dá sentido à realidade do crente e do mundo” (Imizcoz Barriola, José María. Experiencia de Dios y formación vocacional. p.17). 

Ora, essa experiência pessoal de fé está situada em uma tradição religiosa. Isso permite passar do reconhecimento da fé no outro ao reconhecimento da tradição religiosa na qual o crente vive a sua fé. Ou seja, mais além da diversidade de formas em que se expressa a fé ou sua relação com o transcendente, implica o reconhecimento da riqueza e da diversidade religiosa como fonte de sentido para a vida e para a criação

Hoje vivemos inegavelmente na maior parte dos países em sociedades plurais em todos os níveis e, portanto, religiosamente mistas, onde surgem distintas formas de relação entre as religiões. Isso implica reconhecer formas ou modos de conhecimento de Deus que se manifestam em diferentes tradições religiosas. O reconhecimento da própria singularidade é importante para reconhecer o diverso; e, nesse sentido, as religiões podem ajudar para que o mundo global não seja um mundo uniforme, mas respeitoso da diversidade, contribuindo para instaurar normas mínimas nas quais todos possamos nos encontrar, a fim de salvaguardar a dignidade e o respeito que cada ser humano merece. 

Nessa perspectiva, é feito um chamado ao diálogo com outras culturas, mas igualmente a um diálogo no interior da própria cultura cristã, de modo que as tradições estabelecidas sejam expressão da transmissão de um testemunho, e não obstáculo à aceitação da inovação e do aprendizado mútuo. O diálogo, como crentes, com outras culturas ou visões da realidade, envolve compreensão e respeito. Essas duas modalidades do diálogo entre culturas “são valores e princípios do cristianismo que hoje, como ontem, nos convidam a unir-nos, para além das diferenças, nas grandes causas que constroem a humanidade e que acendem uma luz na longa noite da injustiça, da violência e da mentira” (Vargas Madera, Ignacio. Diálogo entre culturas. p.35). 

Isso implica o diálogo no interior da própria tradição cristã. Com base no encontro com o outro tal como ele é, os cristãos podem aprofundar seu compromisso com Jesus e, ao mesmo tempo, estar mais bem preparados para realizar um diálogo com crentes de outras tradições religiosas

Nesse processo, deseja-se que cada membro viva em referência à sua confissão de fé e, ao mesmo tempo, escolha viver em fraternidade e comunhão, a fim de contribuir, de sua parte, para abrir um caminho no qual, juntos, busquem manifestar a unidade do Corpo de Cristo, no respeito e comunhão com suas respectivas Igrejas. 

O fundamento autêntico para a unidade cristã na diversidade pode apresentar diferenças na forma de celebrar, de compreender, de interpretar; mas deve sempre existir acordo entre todas as Igrejas no esforço de amar o próximo e trabalhar pela justiça e pelo amor. Assim, passa-se ao diálogo como constitutivo do ser humano, a um diálogo com as culturas que leva ao encontro entre os cristãos ao compartilhar com as religiões: é o diálogo inter-religioso. O diálogo do cristianismo com as outras religiões é algo que foi ganhando sentido e que, de certo modo, foi se modificando na medida em que cada um foi se compreendendo com maior profundidade e aprofundando nas próprias verdades da fé. 

Hoje não apenas se vê a importância de entrar em diálogo inter-religioso no âmbito da cultura, mas também se fala de uma cultura do diálogo, uma cultura marcada por atitudes profundas que tornam possível o encontro, o respeito, a busca comum, o conhecimento mútuo, a convivência pacífica, a colaboração etc. 

Um princípio a ser levado em conta é que as religiões precisam dar testemunho do seu ser e de seu significado para o ser humano, ou seja, as religiões precisam ser críveis. À luz do discernimento, percebe-se como é importante refletir sobre o diálogo, que, para ser verdadeiro, exige de cada interlocutor fidelidade a si mesmo e respeito ao outro, para então chegar a um terceiro elemento: a comunhão

Do latim communio, o termo comunhão faz referência à participação no que é comum. Pode ser entendida, também, como partilhar os bens entre si ou como tomar parte como membro do mesmo corpo com interesses ou crenças afins, daquilo que se tem em comum. Essa definição nos leva à consciência explícita de que compartilhamos o mesmo espaço comum: o Cosmos e, consequentemente, o Absoluto como doador de vida e de sentido. Este é o ponto de partida para a comunhão entre os crentes, e para chegar a ser uma comunidade que vive essa comunhão a partir da participação no comum: o mundo como lugar propício para o acontecer de Deus

O fator de unidade, de comunhão, é a adesão e a profissão de fé em Jesus Cristo. A partir daí, se entende a comunidade como irmãos. Esta se constitui, em primeiro lugar, por pessoas em relação interpessoal e intersubjetiva. Nessa perspectiva, na comunidade estabelecem-se relações plenamente pessoais e humanizadoras, nas quais cada pessoa se constitui a partir de um “eu” diante de um “tu” para formar um “nós”. 

O Concílio Vaticano II expressa essa clareza quando afirma que “o Plano Salvífico de Deus não se realiza na privacidade personalista fechada em si, mas na constituição de um povo, família, fraternidade e reciprocidade do amor de Deus e do amor ao próximo”. Mas essa comunidade de irmãos, manifestada nas diferentes igrejas cristãs, se dá também em uma igualdade fundamental, da qual todas dão testemunho. A regra de comunidade, da qual já as primeiras comunidades pareciam ter consciência, como bem mostra o evangelho de Mateus, é esta: “Mas vocês não deixem que os chamem de mestres, porque um só é o Mestre de vocês, e todos vocês são irmãos” (Mt 23,8). 

Reconhecimento, diálogo e comunhão se reclamam mutuamente e devem andar sempre juntos na tarefa do discernimento: 

  • Reconhecimento, porque, sem negar o fato das diferenças, aceita de maneira inequívoca a revelação real em cada religião. 
  • Diálogo, porque, sob a assimetria horizontal entre as religiões, percebe, de modo mais fundamental, a verticalidade de todas com Deus. 
  • Comunhão, porque cada religião traz traços importantes da manifestação de Deus, que permitem a cada crente reconhecer a Deus como centro absoluto. 

Acolher esse mistério exige aproveitar todas as luzes, oferecendo as próprias e acolhendo as dos outros. Nesse sentido, a riqueza dos traços da revelação captada em cada religião leva a configurar, a partir de cada caminho religioso, a comunhão. 
Dessa forma, todos e cada um desses elementos se constituem em critérios de discernimento de busca sincera para viver a plena comunhão entre homens e mulheres de Deus. 

Concluindo nosso itinerário de reflexões, podemos, ainda, pensar: 

  • De que forma eu acolho e valorizo a diversidade de ideias, culturas e crenças nas minhas relações do dia a dia? 
  • Em quais momentos percebo dificuldade em dialogar com o diferente e como isso afeta a construção de comunhão e fraternidade? 
  • O que significa, para mim, viver a fé e a esperança em um mundo plural, sem perder minha identidade, mas respeitando a dos outros? 

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