A diversidade das juventudes e a missão de constituir comunidades permanentes

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Luiz Eleildo Pereira Alves

Uma coisa é certa para os crentes: a atividade humana individual e coletiva, aquele imenso esforço com que os homens, no decurso dos séculos, tentaram melhorar as condições de vida, corresponde à vontade de Deus. (Gaudium et Spes, n.34) 

Na etapa anterior destas reflexões, discutimos de forma geral a dimensão do engajamento social entre sujeitos jovens, reconhecendo que a construção coletiva só é possível quando se parte do reconhecimento das individualidades. Hoje, avançamos para um ponto fundamental: a diferença entre comunidades provisórias e permanentes, e como promover, no contexto juvenil, vínculos duradouros que superem o isolamento típico do mundo contemporâneo. 

De forma ampla, podemos entender comunidade como um agrupamento social — nem sempre vinculado a um território — unido por um propósito comum. Em áreas rurais e pequenos distritos, esse vínculo frequentemente nasce de necessidades concretas: a luta pela subsistência, o enfrentamento da estiagem, a busca por melhores condições de vida. São questões enraizadas na experiência cotidiana que moldam o discurso e a prática social, gerando uma rede de inter-relações sustentadas pelo compartilhamento de realidades comuns. Nas cidades grandes, no entanto, essa dimensão tende a se enfraquecer: a vida em condomínios fechados, a fragmentação espacial e a ausência de diálogo face a face dificultam a construção de uma preocupação mútua pela vida do outro. Basta comparar a vida comunitária em bairros periféricos, onde dramas são partilhados, e em bairros nobres, onde prevalece o isolamento. 

Como afirma Lima (LIMA, Lauro de Oliveira. Educar para a comunidade), o ser humano é, por natureza, um ser social, e o afastamento dessas relações primárias gera a busca por outros espaços de pertencimento — muitas vezes em grupos específicos como esportivos, artísticos ou religiosos. Assim, é salutar definir: chamamos de comunidade permanente o espaço social em que vínculos afetivos duradouros se entrelaçam em contextos de longa duração. Já as comunidades provisórias surgem de encontros pontuais, como eventos acadêmicos, religiosos ou políticos, nos quais há interação em torno de um propósito comum, mas que se desfazem com a dispersão do grupo. Embora não exista um vínculo afetivo profundo nem “perturbação estrutural” suficiente para promover autopoiese mútua, não é raro que amizades mais sólidas nasçam desses ambientes, sobretudo, com o auxílio das tecnologias digitais (WhatsApp, Instagram, X), como observa a própria experiência contemporânea de “amigos virtuais”. 

Citando o Cardeal Dom Evaristo Arns (Comunidade, união e ação), podemos dizer que a comunidade permanente é aquele espaço de empatia, de qualidade co-natural em que os seres vivos crescem uns ao lado dos outros até que começam a crescer para dentro dos outros. Grupos que se unem na dor, na alegria e onde crescem “em idade e graça”.  

O desafio, portanto, está em oferecer aos jovens contextos em que brote esse tipo de comunidade, que favoreçam vínculos permanentes. Isso implica resistir à lógica individualista e consumista, que reduz a vida comunitária a interações superficiais e que colocam os jovens uns contra os outros: o competitivismo do trabalho, a disputa intelectual, o acúmulo financeiro, a desigualdade social, o preconceito de qualquer natureza, enfim, tudo o que segrega ou exclui.  

A vida Moderna nos habituou a considerar a atividade dos homens como produção e consumo: Aqui produzem, lá consomem. Chega-se a pensar que vendemos nossa atividade, ou que outros consomem parte de nossa vida, enquanto nós consumimos parte da vida dos outros. Chegamos a concluir até que a sociedade Moderna acaba sendo essencialmente sociedade de consumo. Assim coisifica-se o homem e não se respeita a sua dignidade de pessoa que serve e recebe serviços; de pessoa que ama ao dar e que é amada ao receber; de pessoa que entra em nossa vida e que permite a outros fazerem comunidade com ela. (ARNS, Cardeal Dom Paulo Evaristo. Comunidade, união e ação, p.19) 

Como resistência ao paradigma consumista, os jovens constituem formas de resistência em seus lugares de encontro. Permita-me, caro leitor, uma digressão: Neste final de semana, estava na praia em uma das grandes capitais do país, Fortaleza (CE), e fiquei espantado com a quantidade de jovens de idade semelhante que se divertiam. Além do banho, o ritual de comprar marmitas para alimentarem-se “mais barato”, os grupos de pessoas desconhecidas que formavam times improvisados para o vôlei de praia, suas alocações sob pontes, sobre elas, as músicas que ouviam, das mais variadas etc. Tudo isso evidenciava um contexto comunitário como resistência ao mundo que os consome. Registrei a cena: 

Jovens na praia Poço da Draga, em Fortaleza (CE). Fonte: autor.

Fiquei imaginando, por exemplo, como deve ser a vida de trabalho daqueles jovens, como é o lugar em que habitam, quais discursos os constituem, como se percebem. O que pode parecer um lazer é mais, é resistência comunitária, é força que reúne através da realidade comum e, ao mesmo tempo, singular. O que a mim, com meus privilégios, parecia desagradável era a fonte de lazer daqueles sujeitos. O que sempre me causou resistência na juventude parecia a eles tão natural, tão coletivo, tão comum. 

“Descer” para reconhecer essa diversidade de grupos sociais nos coloca em contraste com as realidades que conhecemos e queremos acessar. A quem interessa esses jovens? Quem pensa neles? Estamos com eles? Se estão organizados em lugares tão acessíveis, por que não conseguimos acessá-los? São muitas as reflexões que podemos fazer ao olharmos para esse e para outros perfis de comunidade que nos forçam a descolamentos e a interações com outros campos de ação juvenis.  

Retomando: a Exortação Apostólica Christus Vivit recorda que “precisamos de projetos que os fortaleçam, acompanhem e lancem [os jovens] para o encontro com os outros” (n. 30). O drama para nossa atuação como animadores das juventudes é que para a construção desses projetos não existe uma “fórmula mágica”, mas uma pedagogia da proximidade: comunidade não se fabrica artificialmente; ela brota do encontro verdadeiro, mas ao mesmo tempo precisamos abrir canais para que a comunidade possa respirar.  

Como vimos na primeira parte desta reflexão que empreendemos, do ponto de vista da biologia da cognição, Maturana e Varela (A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana) explicam que todo ser vivo se constitui em redes de interações recorrentes, e no caso humano, a linguagem e as emoções tornam possível a construção de mundos compartilhados. A autopoiese — capacidade de um sistema se produzir e manter a partir de si mesmo — é influenciada pelos encontros: relações afetivas profundas perturbam estruturalmente os sujeitos, reorganizando modos de ser e de conhecer. Por isso, comunidades permanentes têm potencial de transformação mais profundo do que as provisórias, pois envolvem convivência continuada e afetos duradouros. 

Lauro de Oliveira Lima alerta que a formação da personalidade não é simples conteúdo a ser transmitido, mas “uma forma de vida, diante da qual o indivíduo reage, incorporando atitudes e preparando resistências” (A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana, p. 55), a exemplo da minha narrativa sobre os jovens na praia. Quando a comunidade é reduzida a um espaço artificial, ela perde seu caráter transformador e se limita a um convívio infantilizado, incapaz de amadurecer o indivíduo. Ao contrário, o ambiente comunitário autêntico é crítico, dialético e orientado para um desenvolvimento não-ingênuo, que respeita tanto a dimensão coletiva quanto a individualidade. 

Essa tensão entre individual e coletivo também se reflete no dinamismo das sociedades. Lima (Educar para a comunidade) aponta que uma sociedade pode ser conservadora, aceitando suas realizações e reconhecendo imperfeições; pode ser revolucionária, em busca de mudança total; ou pode ser “revolucionária orgânica”, incorporando a mudança como parte constante da vida social, adaptando-se sem romper totalmente com o passado. Em qualquer caso, a liberdade individual é um elemento intrínseco, e quando violada por coação irresistível, pode levar tanto à involução da personalidade quanto a rebeliões permanentes como forma de preservar a integridade. 

O jovem sempre quis ser livre. Tudo que o aprisiona é rechaçado. Essa afirmação parece contradizente com a realidade, sobretudo a eclesial, quando vemos jovens que se aglomeram em eventos de natureza tão conservadora, que por vezes “tolhe” as individualidades. No entanto, precisamos lembrar que esse próprio movimento se origina da busca por pertencimento, do desejo de encontrar seus iguais e, não podemos esquecer que brotam da busca por estabilidade em um mundo tão instável, em completa mudança, em crise social, ética etc.  

Do ponto de vista geográfico e cultural, Cardoso e Turra Neto (Juventude, cidade e território: esboços de uma geografia das juventudes) lembram que a condição juvenil se pluralizou no século XX, especialmente após a Segunda Guerra. No contexto latino-americano, a partir da década de 1970, a juventude deixou de estar restrita à escola e à universidade, ganhando visibilidade também no lazer, no consumo e na indústria cultural. Numa mesma cidade, multiplicam-se contextos socioespaciais e trajetórias juvenis, gerando identidades diversas que coexistem e, às vezes, colidem. Esse “caldo de cultura” é fértil, mas também marcado por tensões — inveja, indiferença, efemeridade das amizades, vínculos que se desfazem com a mesma rapidez com que se formam. 

Apesar do que afirmam Cardoso e Turra Neto, a pesquisa Juventude e conexões – comportamento, publicada em 2019, realizada com jovens entre 15 e 29 anos de todas as regiões do país, destacou que as escolas e as faculdades ainda são, no Brasil, as instituições mais importantes para orientar e inspirar os jovens. Vejamos: 

Fonte: Juventude e conexões – comportamento, p. 71. 

Os dados da pesquisa refutam algumas ilusões nossas de que os jovens se influenciam mais pelas redes sociais ou por ideologias políticas e religiosas. É nas instituições de ensino que eles se constituem. Daí a importância de, se quisermos estar com eles, penetrarmos esses lugares. A pergunta é: para onde vai a juventude depois da escola/faculdade? Pois, lá onde eles vivem a vida real, é lá que eles resistem às influências. Mas, também demonstram como são influenciados. É lá onde eles constituem comunidades permanentes. Se nem todos têm acesso à educação de qualidade, quem mais influencia os jovens? Onde eles aprendem sobre afeto, dignidade, direitos sociais? Quem influencia seus projetos de vida? 

Essas são outras perguntas que devem nos preocupar. Se “ninguém pode enfrentar a vida isoladamente” (Fratelli Tutti, n. 8), é necessário que provoquemos a cultura do encontro de resistência. Para isso “a amizade social” é um caminho que busca superar o isolamento produzido pela lógica de mercado. Ao pensar juventude e comunidade, essa perspectiva convida a criar espaços onde os jovens possam experimentar a fraternidade como prática diária, e não apenas como ideal. 

Nesse sentido, podemos pensar ações pastorais, sociais e educativas que promovam encontros reais em que se possa viver não apenas o “torcer junto” em um jogo ou evento, mas também o “cuidar junto” nas necessidades concretas. A passagem de comunidades provisórias para permanentes exige tempo, partilha de vida e um propósito que transcenda o momento. 

Do ponto de vista biológico e teológico, poderíamos dizer que a comunidade permanente é um espaço de “acoplamento estrutural” prolongado — no qual as histórias de vida se entrelaçam de modo a produzir transformações duradouras na forma como os sujeitos percebem e agem no mundo. Maturana e Varela (De máquinas e seres vivos: autopoiese – a organização do vivo) enfatizam que “tudo o que é dito é dito por um observador a outro observador” — o que significa que o sentido da vida comunitária é sempre construído na relação.  

Portanto, pensar juventude e comunidade implica assumir que não basta multiplicar eventos e encontros se eles não gerarem vínculos concretos. A cultura contemporânea, marcada pela transitoriedade e pelo consumo rápido de experiências, favorece comunidades provisórias; o desafio pastoral, educativo e social é fomentar experiências de vida compartilhada que resistam ao tempo e à dispersão. Isso passa por reconhecer que a vida comunitária não é apenas um espaço para “estar junto”, mas um processo de construção mútua, no qual cada um se reconhece no outro e se deixa transformar. 

Em síntese, comunidades permanentes não se constroem por decreto ou programação artificial. Elas nascem do encontro real, do compartilhamento de alegrias e dores, e da persistência em cuidar uns dos outros. Ao compreender que a juventude contemporânea vive em múltiplos contextos socioespaciais e identitários -muitas vezes opressores- nossa tarefa é propor caminhos que unam a dimensão afetiva, a consciência crítica e o engajamento concreto tendo em vista essa diversidade. É nessa interseção que se encontra a possibilidade de um desenvolvimento pessoal e comunitário não-ingênuo, capaz de resistir às forças do isolamento e da superficialidade. 

Agora vamos pensar: 

  • Como temos contribuído para que as oportunidades de encontro — especialmente com jovens — sejam permanentes e transformadores, e não apenas pontuais e superficiais?
  • De que forma nossas visões de comunidade foram moldadas pelo contexto social, econômico e cultural em que vivemos, e como isso influencia nosso modo de incluir (ou excluir) os outros?
  • Como podemos contribuir para que a juventude resista à lógica consumista e individualista?
  • Estamos atentos aos dramas dos diferentes grupos juvenis e dispostos a irmos ao encontro deles?

REFERÊNCIAS

  • ARNS, Cardeal Dom Paulo Evaristo. Comunidade, união e ação. Paulinas: São Paulo, 1972.
  • LIMA, Lauro de Oliveira. Educar para a comunidade. 2ª ed. Vozes: Petrópolis, Rj, 1969.
  • MATURANA, Humberto R.; VARELA, Francisco J. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. 6. ed. Campinas: Psy II, 1995.
  • MATURANA, Humberto R.; VARELA, Francisco J. De máquinas e seres vivos: autopoiese – a organização do vivo. 3. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
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