Wagner Fernandes de Azevedo

“Inácio de Loyola disse estar num estado de indiferença após sua conversão. Ele não se referia à apatia ou ao desinteresse, mas a se desapegar de todos os medos, falsas assunções e desejos egoístas. Em seu estado criativo, ele estava livre para receber o chamado de Deus para uma nova vida de interação saudável com os outros, uma vida de serviço e amor”.

“Para nós que vivemos no mundo do século XXI, o trabalho antirracista é uma parte essencial do nosso chamado para nos desapegarmos de nós mesmos. É o que nos pede para removermos de nossas vidas o ídolo do racismo, para que então nós nos conectemos mais intimamente com Deus e os outros”.

Esses são trechos do livro “The Spiritual Work of Racial Justice: A month of meditations with Ignatius of Loyola”, de Patrick Saint-Jean, noviço jesuíta, publicados por National Catholic Reporter, 22-10-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

Eis o texto.

Quando historiadores da religião contam a história de Inácio de Loyola antes de sua conversão, eles usualmente enfatizam sua vaidade, sua devoção a romances e aventuras e a sua ambição militar. Eles frequentemente esquecem o fato de que a vida de Inácio não era tão boa para ele antes da conversão. Ele não era um mulherengo despreocupado com a vida que frequentemente retratam. A bala de canhão que o feriu gravemente em 1521 não ceifou uma vida de sucesso; pelo contrário, foi um golpe final a um jovem que já havia aguentado muitas mágoas.

A mãe de Inácio morreu quando ele tinha sete anos; seu pai morreu quando ele tinha dezesseis. Um dos seus irmãos mais velhos perdeu a vida na guerra, enquanto outro saiu em uma navegação e nunca mais voltou para casa. Ele cresceu em uma família que observava as tradições religiosas, mas falhava em reforçar os limites morais. Seu pai era um mulherengo que teve muitos filhos bastardos, e o comportamento do seu avô era tão irresponsável e imoral que dois andares do castelo da família foram demolidos como punição pela Coroa.

nácio cresceu largado e sozinho. Ele era encrenqueiro, entrando em sérios problemas, mas sempre apto a usar de sua posição privilegiada para escapar de qualquer consequência. Seu pai, antes de morrer, enviou Inácio para viver em uma casa de um dos governadores provinciais do Rei Ferdinando, e lá Inácio ficou por muitos anos. Como a maioria dos jovens de sua classe social, ele teve pouca educação para além de aprender a ser um bom soldado, um cavaleiro e um galante cortesão. Quando do seu ferimento na Batalha de Pamplona, seu pai adotivo havia caído em desgraça com o rei. Inácio era abandonado com sua própria vaidade para servir como uma âncora na vida.

Depois de sua conversão, no entanto, as prioridades de Inácio começaram a mudar. Ele percebeu que suas próprias emoções estavam “desordenadas” – em outras palavras, desequilibradas, doentias, deixando-o distante da verdadeira identidade dada por Deus. Tão logo ele se recuperou para voltar a caminhar, ele foi para Jerusalém, procurando a geografia física do Cristo mesmo que seu coração procurasse por um caminho espiritual. Quando sua viagem o levou para alguém necessitado, Inácio deu ao homem suas roupas. Então, em uma vigília da Virgem Negra, em uma igreja em Montserrat, Inácio largou sua espada e punhal. Com essas ações, ele demonstrou que estava se separando das suas velhas prioridades. Ele estava aceitando seus desejos e objetivos para se reencontrar – e reorganizar por Cristo.

Racismo e idolatria

No início dos Exercícios Espirituais, Inácio escreveu uma antiga oração chamada Anima Christi. A oração inclui as seguintes palavras: “Permitam-me que não me separe de vocês”. Inácio aprendera que a vaidade e as paixões egoístas se interpunham entre ele e Cristo. Elas também se interpuseram entre ele e seus companheiros humanos. As “afeições desordenadas” nos separam uns dos outros tanto quanto nos separam do Divino.

O racismo é uma forma de afeto desordenado, um desequilíbrio em nossas prioridades que nos coloca fora de sincronia com o Espírito Divino em ação em nosso mundo. A teóloga Mary Shawn Copeland escreveu: “O racismo estraga o espírito e insulta o sagrado; é idolatria”. Em outras palavras, o racismo não apenas causa divisões entre os seres humanos, mas também tem o poder de nos separar de Deus.

A maioria de nós provavelmente está familiarizada com o primeiro dos Dez Mandamentos: “Não tenha outros deuses diante de mim”. O pecado de adorar outro deus – também conhecido como idolatria – é um mandamento que frequentemente esquecemos. Afinal, a maioria de nós provavelmente não se prostra diante de uma estátua ou diz orações a Zeus. O rabino Abraham Joshua Heschel, entretanto, define um ídolo como “qualquer deus que seja meu, mas não seu, qualquer deus preocupado comigo, mas não com você”. Quando permitimos que o racismo exista em nosso Cristianismo, nosso deus não é mais a Força viva e amorosa que sustenta o universo. Podemos pensar que somos devotados ao mesmo Deus que Jesus chamou de Pai, mas, em vez disso, estamos adorando algo sem vida e sem amor, um deus vazio – um ídolo.

“Racismo é uma fé”, escreveu o teólogo George D. Kelsey, “… uma forma de idolatria. É uma busca abortiva por significado”. Kelsey continuou explicando que o conceito de uma “raça superior” surgiu da necessidade de justificar o egoísmo humano na forma de poder político e econômico. Os brancos precisavam encontrar uma desculpa para sua opressão e exploração das pessoas de cor, e então eles criaram um sistema de crenças sobre a própria ordem do ser, uma ideia que era totalmente contrária aos princípios atuais tanto do hebraico quanto do cristão das escrituras. “O deus do racismo”, disse Kelsey, é a própria raça branca, que se propôs a ser “o maior centro de valor”, possuindo um direito inerente ao poder que reduz a vida das pessoas de cor.

O deus do racismo agora permeia nossas instituições políticas, sociais, médicas e educacionais. O padre Bryan Massingale nos desafia a ver essa força em ação mesmo dentro de nossas igrejas, onde “a idolatria reside na crença generalizada de que a estética, a música, a teologia e as pessoas europeias – apenas essas são padronizadas, normativas, universais… Que somente elas podem mediar o divino e carregar o sagrado”. Ele conclui que “idolatria é divinizar o que não é Deus”.

O racismo nos faz ver o branco como “normal”. Equaciona a branquitude com o ser humano, o padrão pelo qual todas as pessoas são avaliadas. O teólogo Soong-Chan Rah observou que o racismo permite que os brancos “construam o mundo à sua própria imagem… estabeleçam padrões para a humanidade pelos quais eles estão fadados ao sucesso e outros fadados ao fracasso”. Centralizar a branquitude dessa forma, diz Rah, é um ato de idolatria que adora o criado ao invés do Criador.

“Afastem-se de tudo o que os separa de Deus, tudo o que possa ocupar o lugar de Deus em seus corações”, advertiu o autor da Primeira Carta de São João (5, 21). Ele estava enfatizando o fato de que, embora um “ídolo” seja algo externo, a força que dá a um ídolo seu poder está em nossos próprios corações. Embora o racismo seja muito real no nível sistêmico, ele também é a personificação externa de nossos próprios corações desordenados.

Podemos pensar que somos imunes às suas demandas, mas mesmo assim reforça uma realidade em que algumas pessoas valem menos que outras, um sistema que perpetua a desigualdade e o sofrimento. E, ao mesmo tempo, separa nossos próprios corações da conexão com o Deus verdadeiro, o Deus do Amor e da Vida. O trabalho do antirracismo requer que trabalhemos em ambos os níveis: lutando contra as forças sociais externas enquanto, ao mesmo tempo, reorganizamos nossas próprias prioridades internas.

À medida que começamos a ver com a Luz de Cristo, também começamos a perceber o que precisa ser reordenado em nossas vidas. Mais cedo ou mais tarde, nos encontramos no ponto em que Inácio se encontrava após seu ferimento, um lugar de visão e iluminação onde somos desafiados a reorganizar nossos desejos interiores.

Este é o propósito dos Exercícios Espirituais. Como disse Inácio, esses Exercícios são os “meios de preparar e dispor sua alma para se livrar de todas as suas afeições desordenadas e, então, após sua remoção, de buscar e encontrar a vontade de Deus na ordem de sua vida”. Após a conversão de Inácio, durante seu longo período de oração em Manresa, ele compreendeu sua jornada espiritual como um processo de reorientação. Ele foi chamado a se afastar intencionalmente de suas paixões desordenadas – seu egocentrismo e suas ilusões de grandeza – para um novo lugar de humildade, um lugar de abertura para Deus.

Inácio se referiu a este lugar como um estado de indiferença. Ele não se referia à apatia ou ao desinteresse, mas a se desapegar de todos os medos, falsas assunções e desejos egoístas. Em seu estado criativo, ele estava livre para receber o chamado de Deus para uma nova vida de interação saudável com os outros, uma vida de serviço e amor.

Para nós que vivemos no mundo do século XXI, o trabalho antirracista é uma parte essencial do nosso chamado para nos desapegarmos de nós mesmos. É o que nos pede para removermos de nossas vidas o ídolo do racismo, para que então nós nos conectemos mais intimamente com Deus e os outros.

Como responderemos a esse chamado? Somente você pode dizer.

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