Tempo dos estudos VII (Autobiografia, 79)

Escrito por Pe. Felipe Soriano, SJ

Quando Inácio de Loyola deixa Barcelona e vai para Paris, ele confiará a um companheiro espanhol os recursos que conseguiu juntar para o seu sustento no tempo dos estudos. Ele mesmo registra que este indivíduo gastou o dinheiro e partiu pela estrada de Ruão, sem o pagar. Mas, estando à espera de passagem nesta mesma cidade, esse indivíduo veio a ficar gravemente doente. Desorientado e sem saber a quem recorrer, decide escrever para Inácio em Paris pedindo-lhe um auxílio.

Inácio receberá notícias sobre ele por meio de uma carta que lhe foi enviada por aquele companheiro. Respondendo a carta, manifesta desejo de ir visitá-lo. Inácio decide ir a Ruão com toda a boa vontade, mesmo tendo motivos de sobra para não acreditar nas intenções deste “nada amigo”. Inácio decide ir a Ruão em sua ajuda, pois, naquela conjuntura, estava certo que o poderia ganhar para Cristo, isto é, deixando o mundo, se entregasse completamente ao serviço de Deus. É neste espírito que Inácio decide partir “sozinho e a pé” pela estrada que leva a Ruão.

A redação do texto autobiográfico de Inácio de Loyola termina aqui escrito em castelhano, diz Pe. Câmara. Conforme registra, o que segue será redigido em italiano por ocasião da sua pausa de trinta dias em Gênova. Essa mudança de língua não só aponta o contexto externo da redação, mas sinaliza algo mais profundo. Inácio tinha todos os motivos para não ir ajudar este “amigo” espanhol. Contudo, como quem escuta o apelo do bom samaritano, vai a seu encontro. Inácio percorrerá a pé e descalço 28 léguas entre Paris a Ruão, sem comer e nem beber. Ele mesmo confessa que, quando fazia oração no caminho, se sentia muito temeroso, pois tinha dúvidas de estar sendo novamente enganado. Quando chegou ao convento de São Domingos, tirou Deus do seu coração esse grande medo.

No dia seguinte, quando acordou ainda de madrugada, sentia tamanha repugnância e temor que quase não conseguia se vestir. Apesar do medo, decide sair de casa e da cidade ainda mesmo antes do nascer do sol… esses medos e dúvidas o acompanharam até a povoação francesa de Argenteuil, que estava a três léguas de distância de Paris. Nesta cidade, como presente de Carlos Magno (Séc. XV), encontra-se na Igreja principal da vila a túnica inconsútil de Cristo (sem costura). Importante destacar que quanto maiores são os medos e dúvidas, mais difícil e pesado é o passo que não avança…

Saindo deste povoado, retomando a estrada de Ruão, Inácio ia deixando aqueles medos para trás e com tantas consolações que no caminho chegava a gritar de alegria. E, como o consolava Deus falando com ele pelo caminho, seguiu sem comer e beber, como havia determinado. Nessa alegria, seu passo se adiantou e percorreu num só dia catorze léguas, hospedando-se num hospital como pobre mendigo. Em todo o tempo permaneceu sem comer e nem beber, caminhando sempre descalço.

Quem conhece Inácio de Loyola sabe, é próprio de sua experiência não mudar as mediações, mesmo na desolação ou na consolação. Algumas vezes nos colocamos para ajudar os outros, mas estamos em situação pior que a do doente. Inácio vai vencendo a si mesmo, isto é, vai buscando e encontrando no seu íntimo aquilo que mais dispõe… “Em Ruão consolou o doente e ajudou a metê-lo num navio para ir para Espanha. E deu-lhe cartas, recomendando-o aos companheiros que estavam em Salamanca, isto é, Calixto, Cáceres e Arteaga que o recebessem”.

O caminho de Ruão é o primeiro desafio que Inácio precisa superar, pois: “o espírito está pronto, mas a carne é fraca” (Mt 26,41). Os vários homens que passam pelo caminho no relato do bom samaritano são reflexo da variedade de ânimo que compromete sua liberdade. Inácio transita de bom a melhor, ou seja, do homem da lei para a prática da humildade e do bem, como quem segue a meditação dos Três Graus de Humildade (EE 164-168), a saber, “quando eu sou fraco é que sou forte” (2 Cor 12, 10).

Texto bíblico: Lc 10, 25-37

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