A Palavra que transforma: entrevista com Frei Guilherme Anselmo 

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Frei Guilherme Anselmo fala sobre a Bíblia, juventude e o encontro com Deus através da Palavra 

Por Guilherme Freitas 

A Sagrada Escritura continua a inspirar gerações e a provocar novos olhares sobre a vida e a fé. Para muitos jovens, ela ainda parece distante, mas a experiência mostra que, quando lida e rezada, a Bíblia revela-se como espaço de encontro com Deus e fonte de esperança. É nessa chave que Frei Guilherme Anselmo, paulistano, frade da Congregação fundada a partir do testemunho de Santo Inácio de Antioquia, padre e docente de línguas clássicas e disciplinas bíblicas, tem desenvolvido sua missão. Entre a pesquisa acadêmica e a vida pastoral, ele se dedica a mostrar que a Palavra não é apenas objeto de estudo, mas alimento vital. 

Conversamos com ele sobre os desafios da leitura bíblica, a relação entre juventude e Palavra de Deus e a atualidade das Escrituras para quem deseja viver a fé de forma encarnada e transformadora. 

MAGIS Brasil: Frei Guilherme, para começarmos, gostaríamos que o senhor se apresentasse. Quem é você e como nasceu sua relação com a Bíblia? 

Frei Guilherme Anselmo: Grato pela oportunidade desse papo! Sou frei Guilherme, paulistano, na Zona Norte. Nasci em 1971, sou geração X, “ponte” entre os Baby Boomers e os Millennials. Dizem que essa geração traz consigo um espírito independente, adaptável e crítico. Pergunto-me: será que essas características são vantagens ou armadilhas? Hoje sou frade inaciano (mas não jesuíta, somos uma Congregação inspirada em outro Inácio, aquele mártir de Antioquia do século II d.C.). Sou padre também. Considero-me fruto de uma caminhada tecida entre o chão popular e a academia, entre a vida religiosa e a paixão pela Palavra de Deus. A primeira vez que olhei o texto bíblico com “outros olhos” foi quando eu era noviço no mosteiro de São Bento. Foi sedução mesmo. Depois, estudei grego no curso de Letras Clássicas, depois Filosofia, Teologia. Fiz um mestrado em Bíblia e agora sigo para um doutoramento em tradução, também de textos bíblicos. Sou docente de línguas clássicas e de disciplinas bíblicas na Teologia. Meu caminho como religioso e professor foi se construindo nesse entrelaçar: a Palavra que me provoca intelectualmente e que, ao mesmo tempo, me sustenta como discípulo no cotidiano. A Bíblia não foi apenas objeto de estudo, mas alimento vital, onde aprendi a escutar, a rezar e a ensinar.  

MAGIS Brasil: Como o senhor concilia a pesquisa acadêmica com a experiência espiritual da Palavra? 

Frei Guilherme Anselmo: Na pesquisa bíblica busco rigor, crítica e diálogo com as leituras mais recentes. Mas a Palavra não se deixa aprisionar em nenhum método: ela se impõe, me desinstala e me pede conversão. Como na psicanálise: é preciso deixar o sujeito falar. Mas, no silêncio da oração, não sou mais exegeta, sou discípulo que deixa o texto moldar a vida. Viver essa dupla dimensão é habitar uma tensão fecunda: a Bíblia como campo de estudo e como lugar de encontro com o Ressuscitado. A ciência abre clareiras e a fé acende o fogo: pronto, já rola um sarau de vida no meio da floresta bíblica. Claro que a fé é fundamental. Sem ela, é só um texto fascinante. Mas, se creio que é a Palavra de Deus, então o texto adquire uma profundidade e um sentido sem comparação. 

MAGIS Brasil: Quais figuras bíblicas podem inspirar a juventude de hoje? 

Frei Guilherme Anselmo: Boas escolhas para contemplar juventudes na Sagrada Escritura: Samuel, Jeremias e Maria. Os três são ícones da ousadia jovem. Eles não tinham todas as respostas, mas se arriscaram na confiança. Aos jovens de hoje, que vivem em meio a crises climáticas, polarizações e ansiedades, esses testemunhos dizem:   

“Fala, Senhor, teu servo escuta” (1Sm 3,10). É Samuel nos ensinando que o coração jovem é chamado à escuta atenta. Antes de querer respostas prontas, aprende a reconhecer a voz de Deus no meio de tantas vozes. A juventude que escuta não vive alienada, mas sintonizada com o essencial. 

– “Não digas: sou apenas uma criança” (Jr 1,7). É Jeremias mostrando que a fragilidade não é desculpa para se omitir. Não subestime a própria vida. O medo não deve paralisar; ele pode se transformar em força profética quando transformado na confiança de que Deus envia. 

– “Faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38). É Maria revelando a coragem do sim sem garantias. Podemos assumir riscos por amor e isso gera vida nova. O jovem que ousa dizer “sim” ao inesperado abre espaço para que o mundo seja transformado pela esperança. 

MAGIS Brasil: Muitos jovens veem a Bíblia como distante ou difícil. Como aproximá-la da vida deles? 

Frei Guilherme Anselmo: Partamos da seguinte conclusão: a Palavra de Deus não é o texto. As palavras, frases, símbolos, imagens, narrativas etc. são instrumentos, são pontes que nos levam até a Palavra de Deus. Ela está dentro do texto, atrás do texto. É preciso acessá-la para além da leitura. Isso vale para alguma técnica ou abordagem interpretativa elaborada, mas vale também para uma leitura simples e direta do texto. A superfície do texto não é suficiente, pode ser até ser usada para um fim oposto ao que foi destinado. Estão aí os fundamentalismos para provar isso. É preciso ir mais fundo. Há sempre a tentação de usar a Bíblia como slogan ou amuleto, sem mergulho. Esse uso instrumental não gera vida, apenas controle. Por outro lado, a leitura rasa a reduz a frases motivacionais. Aos jovens, proponho o caminho da leitura-escuta radical: ler não para confirmar opiniões, mas para ser questionado. É preciso criar espaços de leitura comunitária, hermenêutica crítica e oração profunda. A Bíblia é diálogo vivo, não manual de respostas prontas. 

MAGIS Brasil: Como a espiritualidade inaciana pode contribuir nessa aproximação? 

Frei Guilherme Anselmo: A espiritualidade inaciana nos ensina a colocar-nos dentro da cena bíblica, sentir, imaginar, dialogar com os personagens. E isso tem uma razão: é porque nós estamos lá naqueles textos. As tristezas e alegrias, sonhos e frustrações, dores e prazeres, encontros e desencontros que lemos nos textos são experiências humanas. São nossas experiências. Para os jovens, isso é revolucionário: a Bíblia deixa de ser distante e vira experiência encarnada. Recomendo práticas simples e ousadas: partilhas em grupo com perguntas diretas (“como essa Palavra toca minha vida hoje?”), diários espirituais digitais, rezar com música e arte. O essencial é permitir que a Palavra se conecte com a vida concreta — estudos, afetos, lutas, sonhos.

MAGIS Brasil: O que significa dizer que a Bíblia projeta para a missão? 

Frei Guilherme Anselmo: A Bíblia não é uma âncora que nos prende ao passado, mas uma catapulta que nos projeta para a missão. Ela consola, mas nunca nos deixa parados: sempre nos envia. A esperança bíblica não é ingênua, mas nasce do enfrentamento do sofrimento e da injustiça. Quando o povo exilado ouviu de Isaías: “Eis que faço novas todas as coisas” (Is 43,19), renasceu a confiança de que até no deserto pode brotar vida. Essa é a esperança que sustenta jovens que enfrentam hoje tantas crises, desigualdades ou desesperança no futuro. A fé de Abraão, que “partiu sem saber para onde ia” (Hb 11,8), mostra que ter fé é ousar passos arriscados, mesmo em meio à incerteza. Para os jovens, significa acreditar que vale a pena apostar em relações autênticas, estudos consistentes e engajamento social, mesmo quando os resultados não aparecem de imediato. E a transformação social se revela em Atos dos Apóstolos, quando as primeiras comunidades “tinham tudo em comum e não havia necessitados entre eles” (At 4,34). A Palavra gerou uma prática concreta de solidariedade, desafiando a lógica do acúmulo. Esse testemunho mostra aos jovens que fé não é alienação, mas construção de novos modos de convivência, onde justiça e fraternidade são possíveis aqui e agora.  

MAGIS Brasil: Que mensagem gostaria de deixar aos jovens que desejam se aproximar mais da Palavra? 

Frei Guilherme Anselmo: Se você deseja se aproximar da Palavra, não a trate como um museu, mas como uma conversa viva. Abra-a com a mesma curiosidade com que abre uma mensagem de um amigo querido. Ela vai surpreender, incomodar e consolar. A Palavra não é apenas para padres e freiras, é para todos: estudantes, trabalhadores, artistas, sonhadores. Deixe que ela seja sua bússola. E lembre-se: Deus não fala em códigos indecifráveis, mas na língua da vida, onde cada escolha pode se tornar Evangelho encarnado. Não somos espectadores de um mundo em ruínas, mas construtores de novas possibilidades. Quem se deixa tocar pela Palavra, encontra coragem para transformar medo em esperança, dúvida em fé e egoísmo em solidariedade. Seja bem vindo e bem vinda às comunidades de leitores-ouvintes dos textos mais importantes que a humanidade já concebeu: a Bíblia.

Sobre o entrevistado 

Frei Guilherme Pereira Anselmo Júnior, SIA, é frade da Congregação inspirada em Inácio de Antioquia, padre, professor e pesquisador. Formado em Letras (com ênfase em grego), Filosofia e Teologia, possui mestrado em Teologia com foco em Bíblia e está atualmente em doutoramento em tradução de textos bíblicos. É professor no Pio XI (UNISAL) e no Colégio Paulo VI, em Mogi das Cruzes, e vigário da Paróquia Santa Suzana, no Morumbi. Sua trajetória une pesquisa acadêmica e experiência pastoral, tendo a Palavra de Deus como alimento espiritual e horizonte de missão. 

 

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