É hoje quase um lugar comum afirmar que nos encontramos num tempo de crise, no mundo, na Igreja, nas instituições, na vida pessoal e familiar, no mundo do trabalho, da economia da política, da educação. Rejeitada por muitos como algo perturbador da ordem e destrutivo da normalidade da vida, a crise é saudada por outros como um momento salutar e depurador. A crise que testemunhamos pode ser de “demo-lição” – lição do demo: lição da fragmentação, do egocentrismo, da falta de escuta, da carência de sentido, da exclusão, da perda de valores humanos fundamentais.
Pode também ser uma crise da “crisá-lida”: de transição, de transformação, de espasmos de parto de uma nova consciência. Há motivos de sobra para as nossas lágrimas e também para os nossos risos. A etimologia da palavra crise é exatamente isso: vem do sânscrito kri ou kir e significa desembaraçar, purificar, limpar. Crise designa, então, o processo de purificação do cerne, para trazer à tona o essencial e eliminar os elementos secundários que foram se acumulando no interior da vida, comprometendo-a e esvaziando-a de sentido. Todo processo de purificação implica ruptura, divisão e descontinuidade. Por isso esse processo é também doloroso e assume aspectos dramáticos. Mas é nessa convulsão que se catalisam as forças e se purificam os valores positivos contidos na situação de crise.
Crise na vida são chances de vida
Para a sabedoria chinesa, crise significa perigo e oportunidade. Para os despreparados (imediatistas) representa estresse e colapso. Para os atentos (contemplativos), significa um trampolim para o aprendizado e para o novo. Se não podemos evitar a demolição já em curso, sempre podemos nos preparar para a missão de reconstrução: transformar os escombros de nossas torres de Babel do suposto poder em pedras de suporte para a edificação de um novo viver, mais integrado, solidário e digno. Eis o grande desafio para o nosso momento histórico.
A crise não é um mal que surge inesperadamente, interrompendo o curso normal da vida, mas é um momento de virada. Caímos em crise quando algo novo quer entrar em nossa vida e não podemos / queremos / sabemos lhe dar espaço e atenção. Há momentos na vida em que, para continuar, é preciso romper, entrar num processo de agitação, de instabilidade e radical questionamento. A crise é esse momento angustiante, mas profundamente criativo, que permite o evoluir da vida sobre outras bases e com outros valores; dá-se a passagem de um nível para outro mais alto de vida.
A crise é vitalidade criadora
Em tempos de crise sabe-se apenas que as coisas não podem continuar como estão, mas não se sabe ainda muito bem como devem ser. É uma experiência comparável àquela que nos narram as Escrituras: sente-se que já não é mais possível viver no Egito (em hebraico, significa lugar estreito). Lá, nem tudo é infortúnio, as panelas estão cheias, há pão com fartura, sobrevive-se ainda.
Acontece, porém, que o ser humano não é apenas estômago e sobrevivência. Mas entre a constatação da própria penúria nos cárceres da servidão e a terra da própria liberdade, onde estaríamos em casa, os caminhos nunca são lineares. Aí sempre se interpõem o vazio, a solidão, o medo, o sentimento de estar perdido, os riscos de um vasto deserto. Mas donde vem isso? Por que existe a crise e não antes a estabilidade? Por que não ficamos aí, para sempre felizes, na posse do que temos e na vivência do que somos? Por que esta inquietude que nos arranca de onde nos encontramos e nos transforma em eternos peregrinos?
Por que sonhamos?
Este é, na verdade, o mistério do humano: um coração inquieto, insensatamente apaixonado pelo que ainda não é. É a vida querendo mais, transpondo os limites que lhe foram impostos ou que ela mesma se deu. Por mais realizados que sejamos como pessoas, por mais amplas e sinceras que sejam nossas realizações, haverá em todos nós – se mantivermos vivo o nosso espírito – instantes de doída inquietude, momentos em que jorrará em nós algo como uma nostalgia do desconhecido, uma saudade do ainda não experimentado, um desejo de encontrar o que ainda não temos. Em algum lugar de nós mesmos, indestrutível, parece restar sempre um sentimento de que o tudo que somos e temos ainda não é tudo, que podemos ser melhores, que a realidade pode ser mais justa e o mundo mais belo e que o principal está ainda por vir.
Não é sintoma de uma catástrofe iminente, mas é o momento crítico em que a pessoa se questiona radicalmente a si mesma sobre o seu destino, sobre o mundo que a cerca, sobre a sua missão. A crise aparece como uma dimensão da transformação. As crises tem sempre uma dimensão instrutiva, isto é, sempre uma oportunidade de aprendizagem, de evolução, de crescimento. Elas podem sinalizar mudanças positivas e liberar forças e criatividade para uma vida mais vigorosa e cheia de renovado sentido e energia; elas dão início a profundas transformações, rompendo coisas incrustadas, atitudes acomodadas, visões estreitas.
Texto bíblico: Is 26, 15-19 / Jo 16, 20-33
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